domingo, julho 22, 2007


Branca, preta ou amarela
A ariana zela.

Tem caráter dominador
Mas pode ser convencida
E ai, então, fica uma flor:
Cordata... e nada convencida.

Porque o seu dominador
É o amor.
Eu cá por mim não tenho nenhum
Preconceito racial:
Mas sou ariano!

(Vinicius de Moraes)

Foto de Munoz - The National Ballet of Cuba, 2001

Ariana, a mulher


"Quando, aquela noite, na sala deserta daquela casa cheia de montanha em tomo
O tempo convergiu para a morte e houve uma cessação estranha seguida de um debruçar do instante para o outro instante
Ante o meu olhar absorto o relógio avançou e foi como se eu tivesse me identificado a ele e estivesse batendo soturnamente a meia noite
E na ordem de horror que o silêncio fazia pulsar como um coração dentro do ar despojado senti que a Natureza tinha entrado invisivelmente através das paredes e se plantara aos meus olhos em toda a sua fixidez noturna
E que eu estava no meio dela e à minha volta havia árvores dormindo e flores desacordadas pela treva.
Como que a solidão traz a presença invisível de um cadáver? e para mim era como se a Natureza estivesse morta
Eu aspirava a sua respiração ácida e sua deglutição monstruosa mas para mim era corno se ela estivesse morta
Paralisada e fria, imensamente erguida em sua sombra imóvel para o céu alto e sem lua
E nenhum grito, nenhum sussurro de água nos rios correndo, nenhum eco nas quebradas ermas
Nenhum desespero nas lianas pendidas, nenhuma fome no muco aflorado das plantas carnívoras
Nenhuma voz, nenhum apelo da terra, nenhuma lamentação de folhas, nada.
Em vão eu atirava os braços para as orquídeas
insensíveis junto aos lírios inermes como velhos
falos Inutilmente corria cego por entre os troncos
cujas . parasitas eram como a miséria da vaidade
senil dos homens
Nada se movia como se o medo tivesse matado em mim a mocidade e gelado o sangue capaz de acordá-los
E já o suor corria do meu corpo e as lágrimas dos meus olhos ao contato dos cactos esbarrados na alucinação da fuga E a loucura dos pés parecia galgar lentamente os membros em busca do pensamento
Quando caí no ventre quente de uma campina de vegetação úmida e sobre a qual afundei minha carne.
Foi então que eu compreendi que só em mim havia morte e que tudo estava profundamente vivo
Só então vi as folhas caindo, os rios correndo, os troncos pulsando, as flores se erguendo
E ouvi os gemidos dos galhos tremendo, dos gineceus se abrindo, das borboletas noivas se finando
E tão grande foi a minha dor que angustiosamente abracei a terra como se quisesse fecundá-la
Mas ela me lançou fora como se não houvesse força em mim e como se ela não me desejasse
E eu me vi só, nu e só, e era como se a traição me envelhecido eras
Tristemente me brotou da alma o branco nome da Amada e eu murmurei
- Ariana!
E sem pensar caminhei trôpego como a visão do Tempo e murmurava
- Ariana!
E tudo em mim buscava Ariana e não havia em nenhuma parte
Mas se Ariana era a floresta, por que não havia de ser Ariana a terra?
Se Ariana era a morte, por que não havia de ser Ariana a vida?
Por quê? - se tudo era Ariana e só Ariana havia e nada fora de Ariana?
Baixei à terra de joelhos e a boca colada ao seu seio disse muito docemente
- Sou eu, Ariana...
Mas eis que um grande pássaro azul desce e canta aos meus ouvidos
- Eu sou Ariana!
E em todo o céu ficou vibrando como um hino o muito. amado nome de Ariana.
Desesperado me ergui e bradei: Quem és que te devo procurar em toda a parte e estás em cada uma?
Espírito, carne, vida, sofrimento, serenidade, morte, por que não serias uma?
Por que me persegues e me foges e por que me cegas se me dás uma luz e restas longe?
Mas nada me respondeu e eu prossegui na minha peregrinação através da campina E dizia: Sei que tudo é infinito! e o pio das aves me trazia o grito dos sertões desaparecidos
E as pedras do caminho me traziam os abismos e a terra seca a sede nas fontes.
No entanto, era como se eu fosse a alimária de um anjo que me chicoteava
- Ariana!
E eu caminhava cheio do castigo e em busca do martírio de Ariana
A branca Amada salva das águas e a quem fora prometido o trono do mundo.
E eis que galgando um monte surgiram luzes e após janelas iluminadas e após cabanas iluminadas E após ruas iluminadas e após lugarejos iluminados como fogos no mato noturno
E grandes redes de pescar secavam às portas e se ouvia o bater das forjas.
E perguntei: Pescadores, onde está Ariana?
- e eles me mostravam o peixe
Ferreiros, onde está Ariana?
- e eles me mostravam o fogo
Mulheres, onde está Ariana?
- e elas me mostravam o sexo.
Mas logo se ouviam gritos e danças, e gaitas tocavam e guizos batiam
Eu caminhava, e aos poucos o ruído ia se alongando à medida que eu penetrava na savana
No entanto, era como se o canto que me chegava entoasse
- Ariana!
pensei: Talvez eu encontre Ariana na Cidade de ouro - por que não seria Ariana a mulher perdida?
Por que não seria Ariana a moeda em que o obreiro gravou a efígie de César?
Por que não seria Ariana a mercadoria do Templo ou a púrpura bordada do altar do Templo?
E mergulhei nos subterrâneos e nas torres da Cidade de ouro mas não encontrei Ariana
Às vezes indagava - e um poderoso fariseu me disse irado:
- Cão de Deus, tu és Ariana!
E talvez porque eu fosse realmente o Cão de Deus não compreendi a palavra do homem rico
Mas Ariana não era a mulher, nem a moeda, nem a mercadoria, nem a púrpura
E eu disse comigo: Em todo lugar menos que aqui estará Ariana
E compreendi que só onde cabia Deus cabia Ariana.
Então cantei: Ariana, chicote de Deus castigando Ariana!
E disse muitas palavras inexistentes
E imitei a voz dos pássaros e espezinhei sobre a urtiga mas não espezinhei sobre a cicuta santa
Era como se um raio tivesse me ferido e corresse desatinado dentro de minhas entranhas
As mãos em concha, no alto dos morros ou nos vales eu gritava
- Ariana!
Ariana, a mulher - a mãe, a filha, a esposa, a noiva, a bem amada!
E muitas vezes o eco ajuntava: Ariana... Ana ... E os trovões desdobravam no céu a palavra
Ariana.
E como a uma ordem estranha, as serpentes saíam das tocas e comiam os ratos
Os porcos endemoninhados se devoravam, os cisnes tombavam cantando nos lagos
E os corvos e abutres caíam feridos por legiões de águias precipitadas
E misteriosamente o joio se separava dó trigo nos campos desertos
E os milharais descendo os braços trituravam as formigas no Solo
E envenenadas pela terra descomposta as figueiras se tornavam profundamente secas.
Dentro em pouco todos corriam a mim, homens varões e mulheres desposadas
Umas me diziam: Meu senhor, meu filho morre! e outras eram cegas e paralíticas
E os homens me apontavam as plantações estorricadas e as vacas magras.
E eu dizia: Eu sou o enviado do Mal! e imediatamente as crianças morriam
E os cegos se tomavam paralíticos e os paralíticos cegos
E as plantações se tomavam pó que o vento carregava e que para afastar o calor sufocava as vacas magras.
Mas como quisessem me correr eu falava olhando a dor e a maceração dos corpos
-Não temas, povo escravo! A mim me morreu a alma mais do que o filho e me assaltou a indiferença mais do que a lepra
A mim se fez pó a carne mais do que o trigo e se sufocou a poesia mais do que a vaca magra
Mas é preciso! para que surja a Exaltada, a branca e sereníssima Ariana
A que é a lepra e a saúde, o pó e o trigo, a poesia e a vaca magra
Ariana a mulher - a mãe, a filha, a esposa, a noiva a bem-amada!
E à medida que o nome de Ariana ressoava como um grito de clarim nas faces paradas
As crianças se erguiam, os cegos olhavam, os paralíticos andavam medrosamente
E nos campos dourados ondulando ao vento, as vacas mugiam para o céu claro
E um só clamor saía de todos os peitos e vibrava em todos os lábios
- Ariana!
E uma só música se estendia sobre as terras e sobre os rios
- Ariana!
E um só entendimento iluminava o pensamento dos poetas
- Ariana!
Assim, coberto de bênçãos, cheguei a uma floresta e me sentei às suas bordas
- os regatos cantavam límpidos
Tive o desejo súbito da sombra, da humildade dos galhos e do repouso das folhas secas
E me aprofundei na espessura funda cheia de ruídos e onde o mistério passava sonhando
E foi corno se eu tivesse procurado e sido atendido vi orquídeas que eram camas doces para a fadiga
Vi rosas selvagens cheias de orvalho, de perfume eterno e boas para matar a sede
E vi palmas gigantescas que eram leques para afastar o calor da carne.
Descansei - por um momento senti vertiginosamente o húmus fecundo da terra
A pureza e a ternura da vida nos lírios altivos como falos
A liberdade das lianas prisioneiras, a serenidade das quedas se empenhando
E mais do que nunca o nome da Amada me veio e eu murmurei o apelo
- Eu te amo, Ariana!
E o sono da Amada me desceu aos olhos e eles cerraram a visão de Ariana
E, meu coração pôs-se a bater pausadamente doze vezes o sinal cabalístico de Ariana
Depois um gigantesco relógio se precisou na fixidez do sonho, tomou forma e se situou na minha frente, parado sobre a meia-noite
Vi que estava só e que era eu mesmo e reconheci velhos objetos amigos
Mas passando sobre o rosto a mão gelada senti que chorava as puríssimas lágrimas de Ariana
E que o meu espírito e o meu coração eram para sempre da branca e sereníssima Ariana
No silêncio profundo daquela casa cheia da montanha em torno".

(Vinicius de Moraes)
Foto de Alfred Eisenstaedt - Kissing on VJ Day - Times Square - May 8th, 1945.

Minas Enigma


de Fernando Sabino

Minas além do som, Minas Gerais
(Carlos Drummond de Andrade)

Se sou mineiro? Bem, é conforme, dona. (Sei lá por que ela está perguntando?) Sou de Belzonte, uai.
Tudo é conforme. Basta nascer em Minas para ser mineiro? Que diabo é ser mineiro, afinal? Inglês misturado com oriental? É fumar cigarro de palha, como o poeta Emílio, de Dores do Indaiá? Autran fuma cachimbo. Tem até quem fume cigarro americano. (No bairro do Calafate havia uma fábrica de "Camel".) Em suma: ser mineiro é esperar pela cor da fumaça. É dormir no chão para não cair da cama. É plantar verde pra colher maduro. É não meter a mão em cumbuca. Não dar passo maior que as pernas. Não amarrar cachorro com lingüiça.
Porque mineiro não prega prego sem estopa. Mineiro não dá ponto sem nó. Mineiro não perde trem.
Mas compra bonde.
Compra. E vende pra paulista.
Evém mineiro. Ele não olha: espia. Não presta atenção: vigia só. Não conversa: confabula. Não combina: conspira. Não se vinga: espera. Faz parte do decálogo, que alguém já elaborou. E não enlouquece: piora. Ou declara, conforme manda a delicadeza. No mais, é confiar desconfiando. Dois é bom, três é comício. Devagar que eu tenho pressa.
Apólogo mineiro: o boi velho e o boi jovem, no alto do morro — lá embaixo uma porção de vacas pastando. O boizinho, incontido:
— Vamos descer correndo, correndo e pegar umas dez?
E o boizão, tranqüilamente:
— Não: vamos descer devagar, e pegar todas.
Mais vale um pássaro na mão. A Academia Mineira, há tempos, pagava um jeton ridículo: duzentos cruzeiros — antigos, é lógico. Um dos imortais, indignado, discursava o seu protesto:
— Precisamos dar um jeito nisso! Duzentos cruzeiros é uma vergonha! Ou quinhentos cruzeiros, ou nada!
Ao que um colega prudentemente aparteou:
— Pera lá: ou quinhentos cruzeiros, ou duzentos mesmo.
Quem nasce em Três Corações é tricordiano — haja vista Pelé. Quem nasce em Barbacena tem de escolher a Maternidade: ou é do Zezinho ou do Bias. E a Manchester Mineira, terra do Murilo Mendes? O poeta Nava foi-se embora: "parabéns a Pedro Nava, parabéns a Juiz de Fora". Itabira, calçada de ferro: não aceitou chamar-se Presidente Vargas, continuou digna do itabirano Carlos. E Ouro Preto continua digna de ser vista: ali é a casa do Rodrigo; Renato de Lima, ex-delegado e pianista amador, pintando junto à Casa dos Contos. Afonso é de Paracatu. Em Sabará nasceram Lúcia e Aníbal, além de outros ilustres Machados. Alphonsus, o solitário de Mariana. Os profetas de Congonhas. A cidade de Tiradentes — o que não tinha barbas. O Aleijadinho não tinha mãos. São João del Rei, onde nasceu Otto, o que morrerá batendo papo. Solidário só no câncer? Absolutamente, dona: nas virtudes também, uai. Haja vista a Tradicional Família Mineira, que Deus a tenha. As estações de águas: lembrança de São Lourenço, escrito num copinho. E Lambari, terra de Henriqueta! Monte Santo tem a rua mais iluminada do mundo. E uma ambulância com sirene, que seu filho Castejon arranjou. Itaúna fica num quarto andar do Leblon, no apartamento de Marco Aurélio, o bom. Jeremias, outro bom, mineiro como Ziraldo. Os bonecos de Borjalo só ganharam boca depois que começaram a falar. Mineiro por todo lado! O poeta Pellegrino, como psiquiatra, tem garantida uma numerosa clientela. Amílcar modela Minas em arame. Paulo encontrou Minas depois que saiu de lá. João Leite levou-a para São Paulo, Alphonsus para Brasília, Guilhermino para o Sul. João Camilo ficou. Etiene voltou. Paulo Lima voltou. Iglezias voltou. Jaques voltou.Figueiró continua, Rubião recomeçou.
Um Estado de nariz imenso, um estado de espírito: um jeito de ser. Manhoso, ladino, cauteloso, desconfiado — prudência e capitalização.
O guarda-chuva da proteção financeira, não como lema do Banco do Magalhães mais o Zé Luís, e sim como regra de conduta:
— Meu filho, ouça bem o seu pai: se sair à rua, leve o guarda-chuva, mas não leve dinheiro. Se levar, não entre em lugar nenhum. Se entrar, não faça despesas. Se fizer, não puxe a carteira. Se puxar, não pague. Se pagar, pague somente a sua.
Mas todos os princípios se desmoronam diante de um lombo de porco com rodelas de limão, tutu de feijão com torresmos, lingüiça frita com farofa. De sobremesa, goiabada cascão com queijo palmira. Depois, cafezinho requentado com requeijão. Aceita um pão de queijo? biscoito polvilho? brevidade? ou quem sabe uma broinha de fubá? Não, dona, obrigado. As quitandas me apertencem, mas prefiro bolinho de januária, e pronto: estou sastifeito...
É a hora e a vez de Guimarães Rosa sorrir e dizer pra cumpadre meu Quelemén: perigoso nada, mira e veja, nas Gerais, essas coisas...
Falar de Minas, trem danado, sô. É falar no mundo misterioso de Lúcio Cardoso, Cornélio Pena ou Rosário Fusco, no mundo irônico, esquivo ou pitoresco de Cyro dos Anjos, Oswaldo Alves, Mário Palmério, seus romancistas. E num mundo de gente, seus personagens, que vão de Antônio Carlos a Milton Campos, de Bernardes a Juscelino — vasto mundo! ah, se eu me chamasse Raimundo. Dentro de mim uma corrente de nomes e evocações antigas, fluindo como o Rio das Velhas no seu leito de pedras, entre cidades imemoriais. Leopoldina, doce de manga, terra de meus pais... Prefiro estancá-las no tempo, a exaurir-me em impressões arrancadas aos pedaços, e que aos poucos descobririam o que resta de precioso em mim — o mistério da minha terra, desafiando-me como a esfinge com o seu enigma: decifra-me , ou devoro-te.
Prefiro ser devorado.
(Foto de Roberto Pinto da Fonseca, Igreja do Rosário - Milho Verde - M.G).

"Os bens e o sangue"


O poema "Os bens e o sangue", de Drummond - foi publicado pela revista Anhembi, de S. Paulo (n.° 2, fevereiro de 1951), precedido da seguinte nota:
"Embora persuadido de que não cabe explicação para um poema, além.da que ele mesmo traz consigo, o autor julga conveniente informar quanto à gênese desta composição.
Resultou ela da leitura de um maço de documentos de compra e venda de datas de ouro no nordeste de Minas Gerais, operações essas realizadas ,em meados do século XIX. Simultaneamente, certo número de proprietários, integrantes da mesma família, resolveu dispor de tais bens, havidos por meio de herança ou de casamento. Até então, permaneciam sob domínio do mesmo grupo familial os terrenos auríferos descobertos em 1781, na serra de Itabira, pelo capitão João Francisco de Andrade, que os transmitira a um seu sobrinho e sócio, o major Lage. Diz Eschwege que as lavras de João Francisco, em 1814, produziam mais de 3 mil oitavas de ouro. A exploração declinou com o tempo, e por volta de 1850 vemos os donos se des-fazerem de jazidas e benfeitorias.
Não se procure em dicionário o significado de lajos e andridos, palavras existentes no contexto, e que são meras variações de nomes de famílias da região.
O nome Belisa, dado a animais, consta de inventário da época."

(No texto existem várias vezes a letra “q” isolada, além de outras grafias não usuais. Estava assim no original impresso)

I
"Às duas horas da tarde deste nove de agosto de 1847
nesta fazenda do Tanque e em dez outras casas de rei, q não de valete,
em Itabira Ferros Guanhães Cocais Joanesia Capão
diante do estrume em q se movem nossos escravos, e da viração
perfumada dos cafezais q trança na palma dos coqueiros
fiéis servidores de nossa paisagem e de nossos fins primeiros,
deliberamos vender, como de fato vendemos, cedendo posse jus e domínio
e abrangendo desde os engenhos de secar areia até o ouro mais fino,
nossas lavras mto nossas por herança de nossos pais e sogros bem amados
q dormem na paz de Deus entre santas e santos martirizados.
Por isso neste papel azul Bath escrevemos com a nossa melhor letra
estes nomes c] em qualquer tempo desafiarão tramóia trapaça e treta:
ESMERIL PISSARRÃO
CANDONGA CONCEIÇÃO
E tudo damos por vendido ao compadre e nosso amigo
[o snr Raimundo Procópio
e a d. Maria Narcisa sua mulher, e o q não fôr vendido, por alborque
de nossa mão passará, e trocaremos lavras por matas,
lavras por títulos, lavras por mulas, lavras por mulatas e arriatas,
que trocar é nosso fraco e lucrar é nosso forte. Mas fique esclarecido:
somos levados menos por gosto do sempre negócio q no sentido
de nossa remota descendência ainda mal debuxada no longe dos serros.
De nossa mente lavamos o ouro como de nossa alma um dia os erros
se lavarão na pia da penitência. E filhos netos bisnetos
tataranetos despojados dos bens mais sólidos e
[rutilantes portanto os mais completos
irão tomando a pouco e pouco desapego de toda fortuna
e concentrando seu fervor numa riqueza só, abstrata e una.
LAVRA DA PACIÊNCIA
LAVRINHA DE CUBAS
ITABIRUÇU
II
Mais que todos deserdamos
deste nosso oblíquo modo
um menino inda não nado
(e melhor não fora nado)
que de nada lhe daremos
sua parte de nonada
e que nada, porém nada
o há de ter desenganado.
E nossa rica fazenda
já presto se desfazendo
vai-se em sal cristalizando
na porta de sua casa
ou até na ponta da asa
de seu nariz fino e frágil,
de sua alma fina e frágil,
de sua certeza frágil
frágil frágil frágil frágil
mas que por frágil é ágil,
e na sua mala-sorte
se rirá êle da morte.
III
Este figura em nosso
pensamento secreto.
Num magoado alvoroço
o queremos marcado
a nos negar; depois
de sua negação
nos buscará. Em tudo
será pelo contrário
seu fado extra-ordinário.
Vergonha da família
que de nobre se humilha
na sua malincônica
tristura meio cômica,
dulciamara nux-vomica.
IV
Este hemos por bem
reduzir à simples
condição ninguém.
Não lavrará campo.
Tirará sustento
de algum mel nojento.
Há de ser violento
sem ter movimento.
Sofrerá tormenta
no melhor momento.
Não se sujeitando
a um poder celeste
ei-lo senão quando
de nudez se veste,
roga à escuridão
abrir-se em clarão.
Este será tonto
e amará no vinho
um novo equilíbrio
e seu passo tíbio
sairá na cola
de nenhum caminho.
V
— Não judie com o menino
compadre.
— Não torça tanto o pepino,
major.
— Assim vai crescer mofino,
sinhô!
— Pedimos pelo menino porque pedir é nosso destino.
Pedimos pelo menino porque vamos acalentá-lo.
Pedimos pelo menino porque já se ouve planger o sino
do tombo que êle levar quando monte a cavalo.
— Vai cair do cavalo
de cabeça no valo.
Vai ter catapora
amarelão e gálico
vai errar o caminho
vai quebrar o pescoço
vai deitar-se no espinho
fazer tanta besteira
e dar tanto desgosto
que nem a vida inteira
dava para contar.
E vai muito chorar.
(A praga que te rogo
para teu bem será.)
VI
Os urubus no telhado:
E virá a companhia inglesa e por sua vez comprará tudo
e por sua vez perderá tudo e tudo volverá a nada
e secado o ouro escorrerá ferro, e secos morros de ferro
taparão o vale sinistro onde não mais haverá privilégios,
e se irão os últimos escravos, e virão os primeiros camaradas;
e a besta Belisa renderá os arrogantes corcéis da monarquia,
e a vaca Belisa dará leite no curral vazio para o menino doentio,
e o menino crescerá sombrio, e os antepassados no cemitério
se rirão se rirão porque os mortos não choram.
VII
Ó monstros lajos e andridos que me perseguis com vossas barganhas
sobre meu berço imaturo e de minhas minas me expulsais.
Os parentes que eu amo expiraram solteiros.
Os parentes que eu tenho não circulam em mim.
Meu sangue é dos que não negociaram, minha alma é dos pretos,
minha carne dos palhaços, minha fome das nuvens,
e não tenho outro amor a não ser o dos doidos.
Onde estás, capitão, onde estás, João Francisco,
do alto de tua serra eu te sinto sozinho
e sem filhos e netos interrompes a linha
que veio dar a mim neste chão esgotado.
Salva-me, capitão, de um passado voraz.
Livra-me, capitão, da conjura dos mortos.
Inclui-me entre os que não são, sendo filhos de ti.
E no fundo da mina, ó capitão, me esconde.
VIII
— Ó meu, ó nosso filho de cem anos depois,
que não sabes viver nem conheces os bois
pelos seus nomes tradicionais. .. nem suas cores
marcadas em padrões eternos desde o Egito.
Ó filho pobre, e descorçoado, e finito,
ó inapto para as cavalhadas e os trabalhos brutais
com a faca, o formão, o couro... Ó tal como quiséramos
para tristeza nossa e consumação das eras,
para o fim de tudo que foi grande!
Ó desejado,
ó poeta de uma poesia que se furta e se expande
à maneira de um lado de pez e resíduos letais...
És nosso fim natural e somos teu adubo,
tua explicação e tua mais singela virtude. . .
Pois carecia que um de nós nos recusasse
para melhor servir-nos. Face a face
te contemplamos, e é teu esse primeiro
e úmido beijo em nossa boca de barro e de sarro".

(Carlos Drummond de Andrade)
Foto: Itabira em 1899.

Sesta


A Martins de Almeida
"A família mineira
está quentando sol
sentada no chão
calada e feliz.
O filho mais moço
olha para o céu,
para o sol não,
para o cacho de bananas.
Corta ele, pai.
O pai corta o cacho
e distribui pra todos.
A família mineira
está comendo banana.
A filha mais velha
coça uma pereba
bem acima do joelho.
A saia não esconde
a coxa morena
sólida construída.
mas ninguém repara.
Os olhos se perdem
na linha ondulada
do horizonte próximo
(a cerca da horta).
A família mineira
olha para dentro.
O filho mais velho
canta uma cantiga
nem triste nem alegre,
uma cantiga apenas
mole que adormece.
Só um mosquito rápido
mostra inquietação.
O filho mais moço
ergue o braço rude
enxota o importuno.
A família mineira
está dormindo ao sol".

(Drummond)

O AVESSO DAS COISAS


Sinopse: Livro de aforismos publicado postumamente. Nele, Carlos Drummond de Andrade mostra um cotidiano lírico, curioso, imprevisível e insólito falando de assuntos como paciência, circo, ciúme, natureza, eternidade e literatura.
Resenha Editorial: Antes de morrer, em 1987, o poeta Carlos Drummond de Andrade entregou aos editores os originais deste livro. Um conjunto de máximas com aparência de mínimas, o trabalho revela um escritor que tira do cotidiano não apenas o lírico mas também o curioso, o imprevisível, o insólito. Com a mesma acuidade do poeta, o lado humorista e filósofo de Drummond mostra como "bater à porta errada costuma resultar em descoberta". Seu modo especial de ver as coisas pelo avesso resulta num livro escrito à maneira de dicionários, com as definições mais improváveis e,por isso mesmo, mais verdadeiras. Em "O avesso das coisas" Drummond cristaliza seu estilo, alcançando a facilidade de se exprimir sobre vários assuntos, entre eles democracia, morte, paciência, circo, ciúme, natureza, estupidez, eternidade e literatura. (por Celso Borges)

"Assim como os antigos moralistas escreviam máximas, deu-me vontade de escrever o que se poderia chamar de mí¬nimas, ou seja, alguma coisa que, ajustada às limitações do meu engenho, traduzisse um tipo de experiência vivida, que não chega a alcançar a sabedoria mas que, de qualquer mo¬do, é resultado de viver.
Andei reunindo pedacinhos de papel onde estas ano¬tações vadias foram feitas e ofereço-as ao leitor, sem que pretenda convencê-lo do que penso nem convidá-lo a repen¬sar suas idéias. São palavras que, de modo canhestro, aspi¬ram a enveredar pelo avesso das coisas, admitindo-se que elas tenham um avesso, nem sempre perceptível mas às ve¬zes curioso ou surpreendente". (C.D.A.)

Alguns destes Aforismos, deixo registrado neste cantinho:
ADMIRAÇÃO
"Às vezes sou tentado a me admirar, e isto me causa a maior admiração".

ALMA
"Prisioneira do corpo, a alma vive em guerra com o carcereiro".

AMOR
“O amor ensina igualmente a ferir e a ser ferido”.
“Amar sem inquietação é amar sem amor”.
“Entre as diversas formas de mendicância, a mais humilhante é a do amor implorado".

“Nossa capacidade de amar é limitada, e o amor infinito; este é o drama”.
“Os dicionários registram as palavras amorosas e omitem os ruídos que as entremeiam ou substituem”.

ARREPENDIMENTO
"Até a cor do arrependimento desbota com o tempo".

ARTE
"A arte vivifica a humanidade e aniquila o artista".
"A obra de arte é o resultado feliz de uma angústia contínua'.

ARTISTA
"O artista não sabe que o mundo existe fora da ar¬te; por isso atreve-se a criar".
"A história das artes não registra os nomes de dois artistas geniais: o primeiro pintor e o primeiro escultor".

Tem muitas frases..., da Letra A a Z, sobre vários assuntos, vale a pena ler o Avesso das Coisas, pela editora Record, eu li e reli - recomendo!

Beijo-flor


"O beijo é flor no canteiro
ou desejo na boca?
Tanto beijo nascendo e colhido
na calma do jardim
nenhum beijo beijado
(como beijar o beijo?)
na boca das meninas
e é lá que eles estão
suspensos
invisíveis"

(Carlos Drummond de Andrade)

Quero me casar


"Quero me casar
na noite na rua
no mar ou no céu
quero me casar.
Procuro uma noiva
loura morena
preta ou azul
uma noiva verde
uma noiva no ar
como um passarinho.
Depressa, que o amor

não pode esperar!"
(Drummond)
Obra de Camile Bombois.

Rejeição


"Não sei o que tem meu primo
que não me olha de frente.
Se passo por sua porta,
é como se não me visse:
parece que está na Espanha
e eu, velhamente, em Minas.
Até me virando a cara,
a cara é de zombaria.
Se ele pensa que é mais forte
e que pode me bater,
diga logo, vamos ver
o que a tapa se resolve.
A gente briga no beco,
longe dos pais e dos tios,
mas briga de decidir
essa implicância calada.
Qual dos dois, mais importante:
o ramo dele, o meu ramo?
O pai mais rico, quem tem?
Qual o mais inteligente,
eu ou ele, lá na escola?
Namorada mais jeitosa,
é a minha ou é a dele?
Tudo isso liquidaremos
a pescoção, calçapé,
um dia desses, na certa.
Sem motivo, sem aviso,
meu primo declara guerra,
essa guerrinha escondida,
de mim, mais ninguém, sabida.
Pode pois uma família
ser assim tão complicada
que nós dois nos detestamos
por sermos do mesmo sangue?
Nossas paredes internas
são forradas de aversão?
Será que o que eu penso dele
ele é que pensa de mim
e me olha atravessado
porque vê na minha cara
o vinco de zombaria
e um sentimento de força,
vontade de bater nele?
Meu Deus, serei o meu primo,
e a mesma coisa sentimos
como se a sentisse o outro?"

(Drummond)
Obra de Camile Bombois

Pavão


"A caminho do refeitório, admiramos pela vidraça
o leque vertical do pavão
com toda a sua pompa
solitária no jardim.
De que vale esse luxo, se está preso
entre dois blocos do edifício?
O pavão é, como nós, interno do colégio".

(Drummond)
O Violeiro, obra de Ernane Cortat

Fim


"Por que dar fim a histórias?
Quando Robinson Crusoé deixou a ilha, que tristeza para o leitor do Tico-Tico.
Era sublime viver para sempre com ele e com Sexta-Feira, na exemplar, na florida
solidão, sem nenhum dos dois saber que eu estava aqui. Largaram-me entre
marinheiros-colonos, sozinho na ilha povoada, mais sozinho que Robinson, com
lágrimas desbotando a cor das gravuras do Tico-Tico".

(C.D.A)
Três Corações,Obra de Isabel de Jesus

A dupla humilhação


"Humilhação destas lombrigas,
humilhação de confessá-las
a Dr. Alexandre, sério,
perante irmãos que se divertem
com tua fauna intestinal
em perversas indagações:
“Você vai ao circo assim mesmo?
Vai levando suas lombrigas?
Elas também pagam entrada,
se não podem ver o espetáculo?
E se, ouvindo lá de dentro.
as gabarolas do palhaço,
vão querer sair para fora,
hem? Como é que você se arranja?”
O que é pior: mínimo verme,
quinze centímetros modestos,
não mais -vermezinho idiota -
enquanto Zé, rival na escola,
na queda-de-braço, em tudo,
se gabando mostra no vidro
o novelo comprovador
de seu justo gabo orgulhoso;
ele expeliu, entre ohs! e ahs!
de agudo pasmo familiar,
formidável tênia porcina:
a solitária de três metros".

(Drummond)
Obra de Alfred Wallis

Nomes


"As bestas chamam-se Andorinha, Neblina ou Baronesa, Marquesa, Princesa.
Esta é Sereia.
aquela. Pelintra,
e tem a bela Estrela.
Relógio, Soberbo e Lambari são burros.
O cavalo, simplesmente Majestade.
O boi Besouro.
outro. Beija-flor
e Pintassilgo, Camarão,
Tem mesmo o boi chamado Labirinto.
Ciganinha, esta vaca; outra. Redonda.
Assim pastam os nomes pelo campo,
ligados à criação. Todo animal
é mágico".

(Carlos Drummond de Andrade)
Imagem: Vaso com Flores, obra de Ernani Pavaneli

sábado, julho 21, 2007


"Acho que escrevo livros como faço música. Tenho música na cabeça o tempo todo. Eu nunca ouço música, porque atrapalha meu escrever."
"Quando eu escrevo acho que tem música no fundo da minha cabeça. E tem uma necessidade inconsciente de escrever de um modo musical. Se uma frase faz sentido, eu leio, releio, mas algo está errado, esse algo errado tem a ver com o sentido musical, o ritmo da frase, não sei como dizer, mas fico realmente satisfeito quando leio de modo musical."
"Escritores dizem, ah, escrevo ouvindo suas canções, ou música clássica. Eu olho para eles e digo: você não gosta de música. Você gosta, mas não é uma pessoa musical. Não toma sua atenção. Se você gosta, qualquer música, no elevador, chama a sua atenção."
(Declarações de Chico Buarque no Festival Literário PEN World Voices, em N.Y.)

JOÃO E MARIA


Agora eu era o herói
E o meu cavalo só falava inglês
A noiva do cowboy
Era vocêAlém das outras três
Eu enfrentava os batalhões
Os alemães e seus canhões
Guardava o meu bodoque
E ensaiava um rockPara as matinês

Agora eu era o rei
Era o bedel e era também juiz
E pela minha lei
A gente era obrigada a ser feliz
E você era a princesa
Que eu fiz coroar
E era tão linda de se admirar
Que andava nua pelo meu país

Não, não fuja não
Finja que agora eu era o seu brinquedo
Eu era o seu pião
O seu bicho preferido
Sim, me dê a mão
A gente agora já não tinha medo
No tempo da maldade
Acho que a gente nem tinha nascido

Agora era fatal
Que o faz-de-conta terminasse assim
Pra lá deste quintal
Era uma noite que não tem mais fim
Pois você sumiu no mundo
Sem me avisar
E agora eu era um louco a perguntar
O que é que a vida vai fazer de mim

(SIVUCA - CHICO BUARQUE)

"Havia, em algum lugar, um parque cheio de pinheiros e tílias, e uma velha casa que eu amava. Pouco importava que ela estivesse distante ou próxima, que não pudesse cercar de calor o meu corpo, nem me abrigar; reduzida apenas a um sonho, bastava que ela existisse para que a minha noite fosse cheia de sua presença. Eu não era mais um corpo de homem perdido no areal. Eu me orientava. Era o menino daquela casa, cheio da lembrança de seus perfumes, cheio da fragrância dos seus vestíbulos, cheio das vozes que a haviam animado."
(Antoine de Saint-Exupéry)

"O homem nasceu para aprender,
aprender tanto quanto a vida lhe permita."
(João Guimarães Rosa)
Fotografia: Eugênio Silva

Som Lusitano


Saudades de Portugal, me peguei cantarolando músicas do
Loucos de Lisboa
Música: João Gil /Letra: João Monge
Parava no café quando eu lá estava
Na voz tinha o talento dos pedintes
Entre um cigarro e outro lá cravava
a bica, ao melhor dos seus ouvintes

As mãos e o olhar da mesma cor
Cinzenta como a roupa que trazia
Num gesto que podia ser de amor
Sorria, e ao sorrir agradecia

São os loucos de Lisboa
Que nos fazem recordar
A Terra gira ao contrário
E os rios correm para o mar

Um dia numa sala do quarteto
Passou um filme lá do hospital
Onde o esquecido filmado no gueto
Entrava como artista principal

Compramos a entrada p'ra sessão
Pra ver tal personagem no écran
O rosto maltratado era a razão
De ele não aparecer pela manhã

Mudamos muita vez de calendário
Como o café mudou de freguesia
Deixamos de tributo a quem lá pára
Um louco a fazer-lhe companhia

E sempre a mesma posse o mesmo olhar
De quem não mede os dias que vagueam
Sentado la continua a cravar
Beijinhos as meninas que passeiam
.

“Sou fascinado pela minha família, acho que eu não poderia ter tido mais amor, educação e liberdade em nenhuma outra família no mundo. Eles moldaram a minha vida. Meu primeiro instrumento foi uma harmônica dada pela minha avó. Ela me deu um acordeão, e foi aí que minha vida musical começou”.
(Milton Nascimento)

"Filho para mim é resultado de um acontecimento entre duas pessoas. Acho estranho quando resolve assim: "Estou muito só e vou ter um filho". Ou: "Não gosto que mexam nas minhas posses, vou ter um filho solteira". Isso não entra na minha cabeça. Vem da minha família que filho é mesa cheia, refeição com meu pai e minha mãe, os dois na mesma cabeceira. Eu gosto muito de quietude, mas gosto muito também de gente. Eu acho que o homem, quando fica só, tende a não exercitar seu melhor. A gente deve diariamente exercitar a convivência. Cinco minutos por dia, e está bonzinho. Minha mãe, por exemplo, é uma mulher que tem lá a vida dela, recatada, séria, fechada, mas todos os dias ela fala: "Graças a Deus eu não estou só".
(Maria Bethânia, para a Revista Marie Clarie, outubro de 2000)
Foto de Bruna Gallegari

"Espiritualidade para mim é tudo, toda manifestação de vida. Onde há consciência há espiritualidade. E todo ser humano é espiritual. O que a gente mais corriqueiramente associa à espiritualidade é essa idéia de auto-aperfeiçoamento, de aprimoramento dos valores éticos e morais, da consolidação da solidariedade, da fraternidade, da doçura, da ternura. A espiritualidade está ligada a todo esse leque das chamadas coisas doces, boas, das coisas amenas..."
(Gilberto Gil, em entrevista para a Revista Marie Clarie, agosto de 2000)

''Por que não lhe disse antes? Apertá-lo demoradamente contra o meu peito e dizer. Não disse porque pensava que tinha pela frente a eternidade.''
(Lygia Fagundes Telles, em 'A Disciplina do Amor')
Foto: Drummond e Lygia Fagundes Teles

Carta de Drummond a Lispector


Rio, 18.8.75

Clarice, querida:

Ler ou reler você é sempre uma operação feliz: descobrem-se coisas, aprimora-se o conhecimento das descobertas. Senti isto percorrendo De corpo inteiro e Visão do esplendor. Obrigado, amiga!

O abraço, a admiração, o carinho do

Drummond

Carta de Drummond a Clarice


Rio, 5 de maio de 1974.

Querida Clarice:

Que impressão me deixou o seu livro*!
Tentei exprimi-la nestas palavras:

– Onde estivestes de noite
Que de manhã regressais
com o ultramundo nas veias,
entre flores abissais?

– Estivemos no mais longe
que a letra pode alcançar:
lendo o livro de Clarice,
mistério e chave do ar.

Obrigado, amiga! O mais carinhoso abraço da admiração do

Carlos

* Onde estiveste de noite.

A Hora da Estrela


Clarice Lispector

"Não se deve deixar os intelectuais brincar com os fósforos".
(Jacques Prévert)

"Vale a pena estar vivo - nem que seja para dizer que não vale a pena."
(Mário Quintana)
(Foto: Liane Neves)

"É preciso tentar ser feliz, nem que seja apenas para dar o exemplo".
(Jaques Prévert)

" Fumar é um jeito discreto de ir queimando as ilusões perdidas. "
(Mário Quintana)

(Foto: Dulce Helfer)

"Os fantasmas não fumam porque poderiam acabar fumando-se a si mesmos "
(Mário Quintana)
(Foto: Dulce Helfer)


"Dois versos para Greta Garbo / O teu sorriso é imemorial como as Pirâmides / e puro como a flor que abriu na manhã de hoje..."
(Mário Quintana)

(Foto: Dulce Helfer)

Se o poeta falar num gato


Se o poeta falar num gato, numa flor,
num vento que anda por descampados e desvios
e nunca chegou à cidade...
se falar numa esquina mal e mal iluminada...
numa antiga sacada... num jogo de dominó...
se falar num daqueles obedientes soldadinhos de chumbo que morriam de verdade...
se falar na mão decepada no meio de uma escada
de caracol...
e disser simplesmente tralalá... Que importa?
Todos os poemas são de amor!
(Mário Quintana)
(Foto: Liane Neves)

Carta desesperada


Como é difícil, como é difícil, Beatriz, escrever uma carta...
Antes escrever os Lusíadas!
Com uma carta pode acontecer
Que qualquer mentira venha a ser verdade...
Olha! O melhor é te descrever, simplesmente,
A paisagem,
Descrever sem nenhuma imagem, nenhuma...
Cada coisa é ela própria a sua maravilhosa imagem!
Agora mesmo parou de chover.
Não passa ninguém. Apenas
Um gato
Atravessa a rua
Como nos tempos quase imemoriais
Do cinema silencioso...
Sabes, Beatriz? Eu vou morrer!

(Mário Quintana)
(Foto: Liane Neves)


"Jamais deves buscar a coisa em si, a qual depende tão somente dos espelhos. A coisa em si, nunca: a coisa em ti. "
(Mário Quintana)
(Foto: Liane Neves)

"Caderno H porque todas as coisas acabavam sendo escritas na última hora, na hora H, na hora final. "
(Mário Quintana)
(Foto: Liane Neves)

" O fim do cigarro tem uma tristeza de fim de linha... "
(Mário Quintana)
(Foto: Liane Neves)


" Porque o reino do poeta...bem, não me venha dizer que não é deste mundo. Este e o outro mundo, o poeta não os delimita: unifica-os. O reino do poeta é uma espécie de Reino Unido do Céu e da Terra. "
(Mário Quintana)

(Foto: Liane Neves)

" Sonhar é acordar-se para dentro. "
(Mário Quintana)

(Foto: Liane Neves)

"A preguiça é a mãe do progresso. Se o homem não tivesse preguiça de caminhar, não teria inventado a roda".
(Mário Quintana)

(Foto: Liane Neves)

" Não gosto de estar dormindo nem de estar morto perto de ninguém. "
(Mário Quintana)

(Foto: Liane Neves)


" Hoje me acordei pensando em uma pedra numa rua de Calcutá. Numa determinada pedra num rua de Calcutá. Solta. Sozinha. Quem repara nela? Só eu, que nunca fui lá, Só eu, deste lado do mundo, te mando agora esse pensamento... Minha pedra de calcutá!"
(Mário Quintana)
(Foto: Liane Neves)

" Que bom ficar assim, horas inteiras
Fumando... e olhando as lentas espirais...
Enquanto, fora, cantam os beirais
A baladilha ingênua das goteiras. "
(Mario Quintana)

(Foto: Liane Neves)

A Rua dos Cataventos


Da vez primeira em que me assassinaram,
Perdi um jeito de sorrir que eu tinha.
Depois, a cada vez que me mataram,
Foram levando qualquer coisa minha.

Hoje, dos meu cadáveres eu sou
O mais desnudo, o que não tem mais nada.
Arde um toco de Vela amarelada,
Como único bem que me ficou.

Vinde! Corvos, chacais, ladrões de estrada!
Pois dessa mão avaramente adunca
Não haverão de arrancar a luz sagrada!

Aves da noite! Asas do horror! Voejai!
Que a luz trêmula e triste como um ai,
A luz de um morto não se apaga nunca!

(Mário Quintana)

ESTE QUARTO


Este quarto de enfermo, tão deserto
de tudo, pois nem livros eu já leio
e a própria vida eu a deixei no meio
como um romance que ficasse aberto...

que me importa este quarto, em que desperto
como se despertasse em quarto alheio?
Eu olho é o céu! imensamente perto,
o céu que me descansa como um seio.

Pois só o céu é que está perto, sim,
tão perto e tão amigo que parece
um grande olhar azul pousando em mim.

A morte deveria ser assim:
Um céu que pouco a pouco anoitecesse
e a gente nem soubesse que era o fim.

(Para Guilhermino César, de Mário Quintana)
(Foto: Liane Neves)

"A felicidade só se fica sabendo quando ela foi embora."
(Heytor Santos Filho, o pseudônimo de Hélio Ricciardi )
Bouquet - Obra de Camille Bombois.

Escrevo com simplicidade
porque sou simples.
“Não tens mistério algum”, disseram-me os médicos
depois da minha operação de apendicite.
Perguntar-me-ão sobre a minha alma,
também não há mistério,
Quando faz vento, sou vento,
quando faz primavera, sou primavera.”
(Hélio Ricciardi)
Da dir. para esq.: Mário Quintana, Hélio Ricciardi e o escritor alegretense Alcy Cheuiche.

Mario por ele mesmo


Nasci em Alegrete, em 30 de julho de 1906. Creio que foi a principal coisa que me aconteceu. E agora pedem-me que fale sobre mim mesmo. Bem! Eu sempre achei que toda confissão não transfigurada pela arte é indecente. Minha vida está nos meus poemas, meus poemas são eu mesmo, nunca escrevi uma vírgula que não fosse uma confissão. Ah! mas o que querem são detalhes, cruezas, fofocas... Aí vai! Estou com 78 anos, mas sem idade. Idades só há duas: ou se está vivo ou morto. Neste último caso é idade demais, pois foi-nos prometida a Eternidade.
Nasci no rigor do inverno, temperatura: 1grau; e ainda por cima prematuramente, o que me deixava meio complexado, pois achava que não estava pronto. Até que um dia descobri que alguém tão completo como Winston Churchill nascera prematuro - o mesmo tendo acontecido a sir Isaac Newton! Excusez du peu... Prefiro citar a opinião dos outros sobre mim. Dizem que sou modesto. Pelo contrário, sou tão orgulhoso que acho que nunca escrevi algo à minha altura. Porque poesia é insatisfação, um anseio de auto-superação. Um poeta satisfeito não satisfaz. Dizem que sou tímido. Nada disso! sou é caladão, introspectivo. Não sei porque sujeitam os introvertidos a tratamentos. Só por não poderem ser chatos como os outros?
Exatamente por execrar a chatice, a longuidão, é que eu adoro a síntese. Outro elemento da poesia é a busca da forma (não da fôrma), a dosagem das palavras. Talvez concorra para esse meu cuidado o fato de ter sido prático de farmácia durante cinco anos. Note-se que é o mesmo caso de Carlos Drummond de Andrade, de Alberto de Oliveira, de Erico Verissimo - que bem sabem (ou souberam) o que é a luta amorosa com as palavras.

(Texto escrito pelo poeta para a revista IstoÉ de 14/11/1984)

quinta-feira, julho 12, 2007

Adaptação da obra L´Opera de la Lune

A obra L´Opera de la Lune do francês Jacques Prévert, foi adaptada aqui no Brasil, pela diretora Miriam Virna. A peça Fragmentos e Sonhos do Menino Lua, de Virna, teve tradução de Adalberto Müller. A história fala sobre Miguel Moreno - que na obra de Prévert tem o nome de Michel Morin, que é um menino que sorri muito pouco, mas à noite, assim que a Lua surge no céu, leva embora sua melancolia. O coro dos ratinhos ruivos, o corpo de baile dos carneirinhos, os relâmpagos, as estrelas, o mar que nunca é perigoso, são alguns dos elementos que povoam os sonhos e as fantasias de Miguel.
Crianças e adultos poderão conferir a partir do dia 22 de julho o espetáculo, Fragmentos e Sonhos do Menino Lua, no Teatro do CCBB - Centro Cultural Banco do Brasil - Brasília. No elenco, Alessandro Brandão; Catarina Accioly; Míriam Virna; Kael Studart e William Ferreira. Duração: 50 minutos.
Endereço: SCES, trecho 2, conjunto 22
Informações: (61) 3310 7087
Ingressos: R$ 15,00 (Inteira) e R$ 7,50 (meia-entrada).
Meia-entrada para estudantes, correntistas do banco e pessoas com idade igual ou maior que 65 anos.
Ilustração: Jacqueline Duhême

L'opéra de la lune


Era uma vez um menino pequeno que não era alegre. Mas este mesmo menino pequeno sorria muito freqüentemente, a noite, porque havia a lua: "A lua sempre está lá para mim e quando eu dormir, eu dou um passeio com isto, me mostra alguns coisas muito bonitas em meu sono".
Livro: L'Opéra de la lune.
Jacques Prévert (Autor), Jacqueline Duhême (Ilustrações)
36 pages - Coleção: ALB JEUNESSE
Editora :
Gallimard
Crítica por Sylvie Neeman:
"Jacques Prévert. L'Opéra de la lune. Balades. Page d'écriture. Le Cancre. En sortant de l'école. Prosper aux enfers. Illustrations de Jacqueline Duhême. Gallimard Jeunesse. Dès 6 ans.En littérature de jeunesse, les noms de Jacques Prévert et de Jacqueline Duhême sont indissociablement liés. L'écrivain et l'artiste peintre se sont connus à la fin des années 1940, par l'intermédiaire de Matisse; Prévert a promis un texte à la jeune femme qui lui avait déclaré vouloir faire des livres pour les enfants. C'est ainsi que débute la belle aventure de L'Opéra de la lune, racontée à la fin du gracieux ouvrage qui vient de paraître. Saviez-vous que c'est à Lausanne, à La Guilde du livre, que le livre sortit pour la première fois? C'était en 1953... Aujourd'hui, les éditions Gallimard Jeunesse éditent ou rééditent six albums à l'occasion des trente ans de la mort de Prévert, tous illustrés par Jacqueline Duhême. Dans Balades, on trouvera les «indispensables»: «En sortant de l'école», «Chanson des escargots qui vont à l'enterrement d'une feuille morte», «Le Cancre»... Un choix de trente poèmes et histoires, dont certains sont repris en albums individuels. Des livres importants, où texte et images préfiguraient au moment de leur création un magnifique renouveau, d'une exigence sans faille, de ce que l'on souhaitait désormais donner à lire et donner à voir aux enfants".

A ópera da Lua


Conto musical - com narradores, piano, flauta, clarinete, contralto de saxofone, bateria, violoncelo e baixo. "Ele nunca tinha conhecido os pais e tinha vivido com pessoas que não eram boas nem más; eles tiveram qualquer outra coisa para fazer, eles não tiveram o tempo... é a história de Michel Morin, o menino pequeno da lua"...
Texto: Jacques PRÉVERT e Música: Jacques MAYOUD