quinta-feira, agosto 11, 2011


"Não dramatizes, não invoques, não indagues. Não percas tempo em mentir."
(Carlos Drummond de Andrade)

Não te aborreças.
(...)
Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
(...)
Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.
Tem paciência se obscuros. Calma, se te provocam.
Espera que cada um se realize e consume
com seu poder de palavra
e seu poder de silêncio.
(CDA)

"Agi sempre para dentro... Nunca toquei na vida... Sempre que esboçava um gesto, acabava-o em sonho, heroicamente... Uma espada pesa mais que a ideia de uma espada... Comandei grandes exércitos — venci grandes batalhas, gozei grandes derrotas — tudo dentro de mim...
Gostava de passear sozinho pelas alamedas e pelos grandes corredores e de comandar as árvores e desafiar os retratos das paredes... No grande corredor sombrio que há ao fundo do palácio passeei com a minha noiva muitas vezes... Eu nunca tive noiva real... Nunca soube como se amava... Apenas soube como se sonhava amar... Se eu gostava de usar anéis de dama nos meus dedos é que às vezes queria julgar que as minhas mãos eram de princesa e que eu era, pelo menos no gesto das minhas mãos, aquela que eu amava...
Um dia foram-me encontrar vestido de rainha... Eu estava sonhando que eu era a minha esposa régia... Gostava de ver a minha face reflectida porque podia sonhar que era a face de outra criatura — porque era de formas femininas, que era de minha amada que era a minha face reflectida... Quantas vezes a minha boca, tocou na minha boca nesse espelho!... Quantas vezes apertei uma das mãos com a outra, quantas adorei meus cabelos com a minha mão alheada para que parecesse dela ao tocar-me. Não sou eu que te estou dizendo isto... É o resto de mim que está falando".

Livro do Desassossego. Vol.I. Fernando Pessoa.

PRECE DE MINEIRO NO RIO


Espírito de Minas, me visita,

e sobre a confusão desta cidade

onde voz e buzina se confundem,

lança teu claro raio ordenador.

Conserva em mim ao menos a metade

do que fui na nascença e a vida esgarça:

não quero ser um móvel num imóvel,

quero firme e discreto o meu amor,

meu gesto seja sempre natural,

mesmo brusco ou pesado, e só me punja

a saudade da pátria imaginária.

Essa mesma, não muito. Balançando

entre o real e o irreal, quero viver

como é de tua essência e nos segredas,

capaz de dedicar-me em corpo e alma,

sem apego servil ainda o mais brando.

Por vezes, emudeces. Não te sinto

a soprar da azulada serrania

onde galopam sombras e memórias

de gente que, de humilde, era orgulhosa

e fazia da crosta mineral

um solo humano em seu despojamento.

Outras vezes te invocam, mas negando-te,

como se colhe e se espezinha a rosa.

Os que zombam de ti não te conhecem

na força com que, esquivo, te retrais

e mais límpido quedas, como ausente,

quanto mais te penetra a realidade.

Desprendido de imagens que se rompem

a um capricho dos deuses, tu regressas

ao que, fora do tempo, é tempo infindo,

no secreto semblante da verdade.

Espírito mineiro, circunspecto

talvez, mas encerrando uma partícula

de fogo embriagador, que lavra súbito,

e, se cabe, a ser doido nos inclinas:

não me fujas no Rio de Janeiro,

como a nuvem se afasta e a ave se alonga,

mas abre um portulano ante meus olhos

que a teu profundo mar conduza, Minas,

Minas além do som, Minas Gerais.
(Carlos Drummond de Andrade)