sábado, junho 30, 2007

Carta de José Araújo a Fernando Pessoa

Carta que José Araújo endereça a Fernando Pessoa, a seguir à morte de Sá-Carneiro, no Hotel de Nice. Publicada por Maria Aliete Galhoz, que a considera dos mais graves documentos sobre o poeta.

Paris, 10 de Maio de 1916

Ex.mo Senhor Pessoa:

Recebi hoje sua carta, desculpe não lhe ter respondido como dizia no meu cartão, mas o Carlos Ferreira ficou de me dar o seu endereço, e como se tinha esquecido, ainda hoje estou esperando o mesmo. Já aqui tinha uma carta preparada para o meu amigo, carta que inutilizei pois preciso de ser um pouco mais extenso.
Vou pois contar-lhe minuciosamente (?) o triste fim do nosso pobre Sá-Carneiro; mas antes vou dizer-lhe em duas palavras como o conheci e como em tão pouco tempo, eu tive um dos meus melhores amigos, e com certeza o mais íntimo. Conheci-o há uns seis meses apresentado por Carlos Ferreira num dos restaurantes do Faubourg e desde esse dia, eu tive um bom amigo e vice-versa, não sei explicar-lhe como se deu este caso bem extraordinário de mais que eu não sendo um escritor nem poeta, mas pertencendo ao comércio, cousa bem material; não sei; um mês depois não se passava um dia sem que nós estivéssemos conversando em qualquer café, horas e horas, por aqui já o meu amigo deve calcular quanto desgosto tive com a sua morte, e como ele e mais ninguém me compreendia. Desculpe-me e a esta mal alinhavada carta mas sou nervoso, portanto não se admire de alguma falta. Foi no mês de Março pouco mais ou menos que Sá-Carneiro teve a infelicidade de encontrar num dos cafés de Montmartre uma rapariga por quem teve grande interesse, digo interesse porque ainda hoje não sei se era amor, simpatia, ou ódio, não sei; desde então Sá-Carneiro mudou bastante, vinha aqui ao escritório sempre apressado, havia mesmo semanas que só vinha aqui três vezes, e mais nada. Assim, chegava aqui e dizia-me: Araújo preciso falar-lhe venha comigo a um café; saíamos e então ele coitado, contava-me o que se passava: que não podia continuar assim, impossível, impossível, aquela mulher; um mistério, um horror, e por aqui fora muito nervoso, e contava-me o que se tinha passado (antes tenho que lhe dizer que ele tomava estricnina em grande dose). Muitas vezes eu perguntava-lhe se ele realmente gostava dessa mulher, a sua resposta invariável era: Não gosto dessa mulher, juro-lhe que não gosto dessa mulher. Calcule o meu amigo o que eu podia fazer nesta situação:Um dia, 26 entrou ele no meu escritório como costumava, depois de falarmos uns momentos disse-me - Araújo preciso que você vá hoje a minha casa ás 8 h, em ponto, sem falta. Assim fiz, quando entrei no quarto, notei que ele estava deitado, muito naturalmente perguntei se lhe doía a cabeça; foi então que ele disse - acabei agora de tomar cinco frascos de arseniato de estricnina, peço-Ihe que fique - corri logo abaixo a buscar um copo de leite, ao mesmo tempo dizia ao criado para subir com o mesmo, enquanto eu ia ao comissariado procurar um médico e ao mesmo tempo um automóvel para o conduzir a um hospital, tudo isto tinha sido feito rapidamente, quando subi com os dois agentes para o transportar ao automóvel, foi então que presenciei a cousa mais horrível que se pode imaginar. Sá-Carneiro agonizava, congestionado numa ânsia horrível, todo contorcido, as mãos enclavinhadas, momentos depois expirava; nada havia que o salvasse, eram 8 horas e 20 minutos, depois foi o quarto fechado por ordem dos agentes e eu fui ao comissariado prestar esclarecimentos. Às 11 horas entrámos novamente no quarto, o comissário dois agentes e eu. Sobre a mesa bem à vista estava uma carta para mim, mais atrás nova carta para o Pai, outra para o men amigo, e mais duas, uma para a tal rapariga, outra para Carlos Ferreira. Sobre o fogão uma folha de papel na qual escrito a lápis e em francês estava o seguinte. Declaro que mato voluntariamente peço p: assim (mim?) o cumulado (?), e para dar a cigarreira ao meu amigo Araújo como recordação, havia também espalhados sobre a mesa 5 frascos vazios de arseniato de estricnina, comprados em diversas farmácias. A rigidez cadavérica foi logo, momentos, digo uns 3/4 horas depois, estava vestido, penteado; horrível, os olhos muito fora das órbitas, a boca aberta, as mãos fechadas sobre o ventre, as pernas um pouco abertas, logo depois da morte tomou uma cor esverdeada que se acentuou pouco a pouco. Depois de revistado por um policia só foram encontradas duas moedas de 10 cêntimos no bolso do colete. Depois de todas estas coisas a que tive a coragem de assistir, foi a porta novamente fechada. No comisariado tomei a responsabilidade sobre o enterro pois o pobre amigo como sabe só aqui tinha eu e Carlos Ferreira como mais fntimos. Fui a casa de Carlos Ferreira e dei-lhe conta do sucedido eram meja-noite ou 1 hora não me recordo.
Só no dia 28 às 8 h. é que foi metido num caixão e isto por grandes reclamações, de contrário ainda estaria no dia 29 em cima da cama. Quando entrei no quarto recuei apavorado, durante a noite o cadáver inchara duma maneira tal que todo o fato tinha rebentado, da boca, do nariz, olhos, ouvidos saía um sangue preto e junto a tudo isto um cheiro insuportável de decomposição. Mandei entrar os homens que traziam o caixão mas não servia era pequeno, note o meu amigo que ninguém se tinha enganado, mas ninguém contara que aumentaria tanto, veio pois um outro caixão (o maior que havia) mesmo assim ainda custou, antes tinha pedido à dona do hotel para me dar um lençol que serviria de mortalha, assim fez. Com grande trabalho foi colocado no caixão, não imagina o meu amigo, estava completamente negro cheio de sangue assim foi envolto na mortalha aparafusado o caixão, foram-lhe passadas umas correias, com receio que rebentasse durante a noite.
No outro dia (29) foi o enterro, modesto, mas decente, não se disse nada, pois não o podíamos mesmo fazer; e assim foi enterrado no cemitério de Pantin, assisti a tudo e só depois de a última pá de terra cair é que me vim embora. Tenho a dizer-lhe que está em coval separado que aluguei por cinco anos. Aqui findo a minha triste narrativa e peço mais uma vez me perdoe a maneira como está feita.
Todos os papéis que encontrei e cartas, tudo está fechado numa mala, o mesmo também com fatos e roupas brancas, chapéus, escovas, tudo inclusive os mais insignificantes objectos (1).
Sobre o que o meu amigo pede os papéis não os posso mandar já pela seguinte razão, Sá-Carneiro devia ao hotel uma conta de 200 e tal francos, de maneira que como eu não posso pagar essa quantia espero que qualquer parente me envie essa importância, mesmo porque eu não disponho aqui de muito dinheiro.
Junto lhe envio diversos papéis e uma carta que ele me deixou espero que me possa dizer alguma coisa sobre este assunto.
Pedindo-lhe mais uma vez desculpa de minha mal acabada carta. Creia-me seu amigo muito obrigado
JOSÉ ARAÚJO

P. S. Não foi encontrado um sobretudo novo, um par de botas também novo e o relógio. Julgam que foram vendidos por ele. Não fui ao cônsul pedir dinheiro nenhum.

Meu caro Senhor e amigo:

Junto-lhe aqui mais uma folha pois preciso dizer-lhe mais umas cousas. Tenho indagado por diversos lados como é que Sá-Carneiro se dava com a tal rapariga, dela tenho as piores informações, ela tinha sobre o nosso pobre amigo uma grande influência. Já ouvi mesmo dizer que ela lhe fazia barbaridades, entre outras a de o obrigar a tomar éter.
Sá-Carneiro gastava com ela quantias enormes em dois meses 3 500 francos e tem ainda aqui umas pequenas dívidas que eu não pude pagar pois como lhe disse na minha carta não disponho dessa quantia.Vou hoje enviar ao pai uma carta dele que ainda aqui tenho, mas não lhe mando nenhuma conta pois não seria talvez muito correcto. Aqui lhe envio todos os papéis e peço-lhe o favor de me dizer o que poderei fazer, pois as próprias despesas que paguei foi um rapaz amigo que me emprestou esse dinheiro.
Pela carta que o Sá-Carneiro me deixou a mim verá que paguei uns 50 francos à tal rapariga conforme recibo.
Se o pai quiser trasladá-lo para Lx. alguns desses papéis serão precisos aqui visto que a sepultura está em meu nome assim como o registo, etc. Será necessário que eu passe uma procuração ou qualquer cousa parecida.
Como não conheço ninguém de família é favor dizer o que devo fazer. Mais uma vez obrigado e seu muito amigo José Araújo.

NOTAS
(1) Mais tarde, tendo recuperado a mala, o pai do poeta declarou não haver nela mais do que roupa traçada. Veja João G. Simões, «O mistério da poesia», e Dieter Woll. João Pinto de Figueiredo aventa a hipótese de o próprio José Araújo ter ficado com os papéis, ao contrário do que afirma na carta. O que importa, entretanto, é que o espólio de Sá-Carneiro desapareceu. Dele faziam parte as cartas de Fernando Pessoa.

Excerto de carta de Mário de Sá-Carneiro III


Relato dos acontecimentos feito por Mário de Sá-Carneiro pelo seu próprio punho, em carta de 4 de Abril de 1916, dirigida a Fernando Pessoa. Vinte e dois dias antes do suicídio de facto:

Meu querido Amigo,

Neste enredo formidável de coisas trágicas e até picarescas, não sei desenvencilhar-me para lhe fixar certos detalhes. Olhe, guinchos e cambalhotas sempre - e sempre, afinal, a Estrela de encontrar pessoas que estão para me aturar. O milagre não se produziu, pois não se podia produzir - o meu Pai não tendo recebido o telegrama como já sei. Assim ontem de manhã deixei a personagem feminina destes sarilhos a dormir, bem certa de que pelo meio-dia regressaria a casa com mil francos… Saí para escrever um pneumático longuíssimo onde contava tudo e anunciava o meu suicídio às duas e meia na estação de Pigalle (Nord-Sud). E que lhe deixaria o meu «stylo» na caixa de certo café, como última recordação. Efectivamente preparei tudo para a minha «morte». Escrevi-lhe uma última carta, a você, outra a meu Pai - e a ela outro pneumático… Depois fui para deixar a caneta… E disseram-me que mademoiselle Fulana muito aflita andava à minha procura… (De resto eu dera-lhe rendez-vous antes de «morrer», às duas horas noutro café)… Ando mais, e de todos os cafés entre a Place Pigalle e a Place Blanche me chamam… Resolvi então - embora já tivesse comprado o bilhete - esperar até encontrá-la…De modo que quando a pobre rapariga mais uma vez aflitíssima me procurava, encontrou-me… a tomar um bock e a consultar o Botin num café… Eram 4 horas… Contou-me então que destacara a irmã para a estação do Nord-Sud, e que fora ao consulado português entretanto, donde voltava… Agora aqui, aparece, quando menos se espera, quem? O Orpheu - meu amigo - o Orpheu!… Os cônsules receberam-na risonhamente… que não fizesse caso… que sabiam muito bem quem eu era… que certa revista de doidos da qual eu fora o chefe, etc., …e que era um détraqué, dum grupo de tarados embrutecidos pela cocaína e outras drogas (sic)… Hem, há-de concordar que isto é de primeira ordem! Enfim… Ficou muito contente por me encontrar - descompôs-me - claro, e foi arranjar dinheiro, visto que eu o não tinha… Antes disso, fiz outra cena: quis partir um copo, eu, na minha cara. Ela agarrou-me a tempo a mão. Não obstante rachei um beiço… Uma beleza como você vê… Arranjou-me também dinheiro para mandar novo telegrama ao meu Pai - e em suma até receber a resposta, será ela que - não sei como: isto é demais o sei… - me arranjará dinheiro. Veja você que coisa tão contrária à minha «sorte», à minha psicologia… Agora já não é blague se se disser que eu vivi à custa duma mulher… Lindo, hem! Um encanto… O termo de tudo isto: Mistério…Talvez mesmo ainda o «Metro»… Mas não faça caso… Ui, que praga! Perdoe todos os sustos por que o fiz passar (venho de resto de enviar-Ihe um telegrama a sossegá-Io). Imagine que a rapariga teve que arranjar 60 francos que gastámos em dois dias num restaurante e café, pois na segunda-feira eu garantira arranjar dinheiro… (não olhava a despesas, pois me mataria). Há-de concordar que tenho sorte em topar sempre com criaturas que não me mandam passear - e que no fundo gostam de mim pela minha zoina…Porque a verdade é esta: é a única coisa que me torna interessante. Você não acha? Soube que o meu Pai não recebeu o telegrama, pois aflitíssimo pediu notícias minhas à legação…Mas esta não telegrafou a resposta…pois não há verba para tais imprevistos. Você escreva. Ria-se: mas no fundo tenha muita pena - muita do seu, seu
Mário de Sá-Carneiro

Escreva imediatamente! Escreva.

Excerto de carta de Mário de Sá-Carneiro a Fernando Pessoa, incluída no livro “Mário de Sá-Carneiro Correspondência com Fernando Pessoa (Volume I)” ed. de Teresa Sobral Cunha, Lisboa: Relógio d’Água, 2003.
Imagem: Capa do primeiro número da revista Orpheu, da autoria de José Pacheco. Embora só se editassem dois números, a Orpheu teve um papel fundamental na revolução modernista portuguesa, contando com colaborações de autores como Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro e Almada Negreiros

Excerto de carta de Mário de Sá-Carneiro II


[…] Na minha psicologia deveras emeandrada há coisas interessantes que lhe detalharei de vez em quando, muito por alto, em paga dos seus estudos. Olhe, por exemplo: a impossibilidade de renúncia. Escute:Eu decido correr a uma provável desilusão. E uma manhã, recebo na alma mais uma vergastada - prova real dessa desilusão. Era o momento de recuar. Mas eu não recuo. Sei já, positivamente sei, que só há ruínas no termo do beco, e continuo a correr para ele até que os braços se me partem de encontro ao muro espesso do beco sem saída. E você não imagina, meu querido Fernando, aonde me tem conduzido esta maneira de ser!… Há na minha vida um bem lamentável episódio que só se explica assim. Aqueles que o conhecem, no momento que o vivi, chamaram-lhe loucura e disparate inexplicável. Mas não era, não era. É que eu se começo a beber um copo de fel, hei-de forçosamente bebê-lo até ao fim. Porque - coisa estranha! - sofro menos esgotando-o até à última gota, do que lançando-o apenas encetado. Eu sou daqueles que vão até ao fim. Esta impossibilidade de renúncia, eu acho-a bela artisticamente, hei-de mesmo tratá-la num dos meus contos, mas na vida é uma triste coisa. Os actos da minha existência íntima, um deles quase trágico, são resultantes directos desse triste fardo. E coisas que parecem inexplicáveis, explicam-se assim. Mas ninguém as compreende. Ou tão raros…

Se fui levado a estas divagações é que presentemente numa circunstância análoga me encontro. Lancei-me na carreira a uma ilusão dourada - pobre ilusão! - Ela podia entretanto ser uma realidade. Mas antes de ontem lá recebi, mais uma vez, a vergastada na alma. E continuo a correr…

Depois sinto-me tão pequeno, tão fraco, tão pouca coisa…

E sempre um calafrio na espinha, arrepiante, estirilizante…

E é nestes momentos ainda assim que - ó miséria! - encontro um pouco de cor-de-rosa na vida… […]

[De uma carta de Mário de Sá-Carneiro a Fernando Pessoa
(Paris, 21 de Janeiro de 1913).]

- Quasi -
Um pouco mais de sol - eu era brasa,
Um pouco mais de asul - eu era alem.
Para atingir faltou-me um golpe d’asa…
Se ao menos eu permanecesse aquem…
Assombro ou paz? Em vão… tudo esvaído
Num baixo mar enganador d’espuma;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho - ó dôr! - quasi vivido…
Quasi o amor, quasi o triunfo e a chama,
Quase o princípio e o fim, quasi a expansão…
Mas na minh’alma tudo se derrama…
Entanto nada foi só ilusão!
De tudo houve um começo… e tudo errou…
- Ai a dôr de ser-quasi, dôr sem fim… -
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se elançou mas não vôou…
Momentos d’alma que desbaratei..
Templos aonde nunca pus um altar…
Rios que perdi sem os levar ao mar…
Ansias que foram mas que não fixei…
Se me vagueio, encontro só indícios…
Ogivas para o sol - vejo-as cerradas;
E mãos d’heroe, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sobre os precipicios…
Num ímpeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possuí…
Hoje, de mim, só resta o desencanto
Das coisas que beijei mas não vivi…
……………………………….
Um pouco mais de sol - e fôra brasa,
Um pouco mais de asul - e fôra alem!
Para atingir, faltou-me um golpe d’asa…
Se ao menos eu permanecesse aquem…
{Paris, 14 de Maio de 1913}


Excerto de carta de Mário de Sá-Carneiro a Fernando Pessoa, incluída no livro “Mário de Sá-Carneiro Correspondência com Fernando Pessoa (Volume I)” ed. de Teresa Sobral Cunha, Lisboa: Relógio d’Água, 2003.

Fernando Pessoa.

Foto de Vitorino Braga.

Excerto de carta de Mário de Sá-Carneiro 1


Mário de Sá-Carneiro-Correspondência com Fernando Pessoa

Paris 16 Novembro 1912

Meu caro amigo

Com péssima disposição de espírito e num dia chuvoso, enervado, escuro como breu venho responder-lhe à sua longa carta. Começo por lhe pedir perdão de em troca lhe enviar poucas linhas - “poucas e mal alinhavanhadas linhas” lugar-comum que, neste caso, exprime bem a verdade.Não tenho de forma alguma passado feliz nesta terra ideal. Tenho mesmo vivido ultimamente alguns dos dias piores da minha vida. Porquê? indigará você. Por alguma coisa- é a minha resposta. Ou antes:por mil pequeninas coisas que somam um total horrível e desolador. Olho para trás, e os tempos a que eu chamei desventurados, afiguram-se-me hoje auéreos, suaves e benéficos. Diante de mim, a estrada vai pouco a pouco estreitando-se, emaranhando-se, perdendo o arvoredo frondoso que a abrigava do sol e do vento. E eu cada vez mais me convenço que não saberei resistir ao temporal desfeito- à Vida, em suma, onde nunca terei lugar.Vê você, eu sofro porque sinto próxima a hora em que o recreio vai acabar, em que é forçoso entrar para as aulas. Talvez não me compreenda nestas palavras, mas eu não tenho paciência nem força para lhe falar mais detalhadamente. Em suma, não creio em mim, nem no meu curso, nem no meu futuro. Já tomei várias decisões desde que aqui estou e um dia senti, na verdade senti cheio de orgulho, que me chegara finalmente a força necessária para desaparecer. Ilusão dourada! Na manhã seguinte essa força remediável tinha desaparecido. E então resolvi voltar para Lisboa, sepultar dentro de mim ambições e orgulhos. Mas não tive também força para o fazer. Sorria-me Paris e, lá ao longe, um fiozinho de esperança que todas as aspirações dentro de mim me fizeram ver como um facho resplandecente. Desembriagado hoje, porém, observo desolado quanto esse fio é ténue. Mais uma vez fui fraco em resumo- adiei, e sempre boiando cá vou vivendo.Depois, no meio da minha angústia, pequeninas coisas se precipitam a exarcebá-la: A saudade de todas as coisas que vivi, as pessoas desaparecidas que estimei e que foram carinhosas para mim. Mas não é isto só: sofro pelos golpes que tenho a certeza hei-de vir a sofrer, como por exemplo, a morte fatal e próxima de algumas pessoas que estimo prigundamente e são idosas. E sofro ainda também, meu querido amigo, por coisas mais estranhas e requintadas- pelas coisas que não foram. De forma que numa tortura constante tenho vivido nestes últimos dias e cheguei mesmo a chorar uma noite- o que há tanto, desde os quinze anos, não me acontecia.(…)
Grande abraço do seu verdadeiro amigo

muito obrigado

Mário de Sá-Carneiro

Excerto de carta de Mário de Sá-Carneiro a Fernando Pessoa, incluída no livro “Mário de Sá-Carneiro Correspondência com Fernando Pessoa (Volume I)”
Imagem: O poeta português Mário de Sá-Carneiro. Um dos membros do grupo da revista Orpheu e amigo de Fernando Pessoa, apesar da morte prematura (por suicídio) deixou uma obra de poesia e prosa significativa, onde por vezes explora as técnicas literárias do futurismo.

Postal caligramático, de Mário de Sá Carneiro para Fernando Pessoa.

Mandarim - Eça de Queirós


Eu chamo-me Teodoro - e fui amanuense do Ministério do Reino.

Nesse tempo vivia eu à Travessa da Conceicão, n.o 106, na casa de hóspedes da D. Augusta, a esplêndida D. Augusta, viúva do major Marques. Tinha dois companheiros: o Cabrita, empregado na Administracão do Bairro Central, esguio e amarelo como uma tocha de enterro; e o possante, o exuberante tenente couceiro, grande tocador de viola francesa.

A minha existência era bem equilibrada e suave. Toda a semana, de mangas de lustrina à carteira da minha reparticão, ia lançando, numa formosa letra cursiva, sobre o papel Tojal do Estado, estas frases fáceis: "Il.mo Sr. - Tenho a honra de comunicar a V. Ex.a... Tenho a honra de passar às mãos de V. Ex.a, Il.mo e Ex.mo Sr. ..."

Aos domingos repousava: instalava-me então no canapé da sala de jantar, de cachimbo nos dentes, e admirava a D. Augusta, que, em dias de missa, costumava limpar com clara de ovo a caspa do tenente Couceiro. Esta hora, sobretudo no Verão, era deliciosa: pelas janelas meio cerradas penetrava o bafo da soalheira, algum repique distante dos sinos da Conceicão Nova e o arrulhar das rolas na varanda; a monótona sussuracão das moscas balançava-se sobre a velha cambraia, antigo véu nupcial da Madame Marques, que cobria agora no aparador os pratos de cerejas bicais; pouco a pouco o tenente, envolvido num lençol como ídolo no seu manto, ia adormecendo, sob a friccão mole das carinhosas mãos da D. Augusta; e ela, arrebitando o dedo mínimo, branquinho e papudo, sulcava-lhe as repas lustrosas com o pentezinho dos bichos... Eu então, enternecido, dizia à deleitosa senhora:

- Ai, D. Augusta, que anjo que é!

Ela ria; chamava-me enguiço! Eu sorria, sem me escandalizar. "Enguiço" era com efeito o nome que me davam na casa - por eu ser magro, entrar sempre as portas com o pé direito, tremer de ratos, ter à cabeceira da cama uma litografia de Nossa Senhora das Dores que pertencera à mamã e corcovar. Infelizmente corcovo - do muito que verguei o espinhaço na Universidade, recuando como uma pega assustada diante dos senhores lentes; na reparticão, dobrando a fronte ão pó perante os meus directores-gerais. Esta atitude, de resto, convém ão bacharel; ela mantém a disciplina num Estado bem organizado; e a mim garantia-me a tranquilidade dos domingos, o uso de alguma roupa branca e vinte mil réis mensais.

Não posso negar, porém, que nesse tempo eu era ambicioso - como o reconheciam sagazmente a Madame Marques e o lépido Couceiro. Não que me revolvesse o peito o apetite heróico de dirigir, do alto de um trono, vastos rebanhos humanos; não que a minha louca alma jamais aspirasse a rodar pela Baixa em trem da Companhia, seguida de um correio choutando; - mas pungia-me o desejo de poder jantar no Hotel Central com champanhe, apertar a mão mimosa de viscondessas e, pelo menos duas vezes por semana, adormecer, num êxtase mudo, sobre o seio fresco de Vénus. Oh! moços que vos dirigíeis vivamente a S. Carlos, atabafados em paletós caros onde alvejava a gravata de soirée! Oh! tipóias, apinhadas de andaluzas, batendo galhardamente para os touros - quantas vezes me fizeste suspirar! Porque a certeza de que os meus vinte mil réis por mês e o meu jeito encolhido de enguiço me excluíam para sempre dessas alegrias sociais vinha-me então ferir o peito - como uma frecha que se crava num tronco e fica muito tempo vibrando!

Ainda assim, eu não me considerava sombriamente um "pária". A vida humilde tem doçuras: é grato, numa manhã de sol alegre, com o guardanapo ão pescoço, diante do bife de grelha, desdobrar o Diário de Notícias; pelas tardes de Verão, nos bancos gratuitos do Passeio, gozam-se suavidades de idílio; é saboroso à noite no Martinho, sorvendo ãos goles um café, ouvir os verbosos injuirar a Pátria... Depois, nunca fui excessivamente infeliz - porque não tenho imaginacão: não me consumia, rondando e almejando em torno de paraísos fictícios, nascidos da minha própria alma desejosa como nuvens da evaporacão de um lago; não suspirava, olhando as lúcidas estrelas, por um amor à Romeu ou por uma glória social à Camors. Sou um positivo. Só aspirava ão racional, ão tangível, ão que já fora alcançado por outros no meu bairro, ão que é acessível ão bacharel. E ia-me resignando, como quem a uma table d'hôte mastiga a bucha de pão seco à espera que lhe chegue o prato rico da charlotte russe. As felicidades haviam de vir: e para as apressar eu fazia tudo o que devia como português e como constitucional: - pedia-as todas as noites a Nossa Senhora das Dores e comprava décimos da lotaria.

No entanto procurava distrair-me. E como as circunvoluçoes do meu cérebro me não habilitavam a compor odes, à maneira de tantos outros ão meu lado que se desforravam assim do tédio da profissão; como o meu ordenado, paga a casa e o tabaco, me não permitia um vício - tinha tomado o hábito discreto de comprar na Feira da Ladra antigos volumes desirmanados, e à noite, no meu quarto, repastava-me dessas leituras curiosas. Eram sempre obras de títulos ponderosos: Galera da Inocência, Espelho Milagroso, Tristeza dos Mal-Deserdados... O tipo venerando, o papel amarelado com picadas de traça, a grave encadernacão freirática, a fitinha verde marcando a página - encantavam-me! Depois, aqueles dizeres ingénuos em letra gorda davam uma pacificacão a todo o meu ser, sensacão comparável à paz penetrante de uma velha cerca de mosteiro, na quebrada de um vale, por um fim suave de tarde, ouvindo o correr da água triste...

Uma noite, há anos, eu começara a ler, num desses in-fólios vetustos, um capítulo intitulado "Brecha das almas"; e ia caindo numa sonolência grata, quando este período singular se me destacou do tom neutro e apagado da página, com o relevo de uma medalha de ouro nova brilhando sobre um tapete escuro: copio textualmente:

"No fundo da China existe um mandarim mais rico que todos os reis de que a fábula ou a história contam. Dele nada conheces, nem o nome, nem o semblante, nem a seda de que se veste. Para que tu herdes os seus cabedais infindáveis, basta que toques essa campainha, posta a teu lado, sobre um livro. Ele soltará apenas um suspiro, nesses confins da Mongólia. Será então um cadáver: e tu verás a teus pés mais ouro do que pode sonhar a ambicão de um avaro. Tu, que me lês e és um homem mortal, tocarás tu a campainha?"

Estaquei, assombrado, diante da página aberta: aquela interrogacão "homem mortal, tocarás tu a campainha?" parecia-me faceta, picaresca, e todavia perturbava-me prodigiosamente. Quis ler mais; mas as linhas fugiam, ondeando como cobras assustadas, e no vazio que deixavam, de uma lividez de pergaminho, lá ficava, rebrilhando em negro, a interpelacão estranha - "tocarás tu a campainha?"

(Queirós, Eça de, O Mandarim, texto integral com nota introdutória, Livros de Bolso Europa-América, 222, Publicaçoes Europa-América, Mem-Martins s.a., pp. 25-28)
Foto de Cartier-Bresson

"Que suave é o ar! Como parece
Que tudo é bom na vida que há!
Assim meu coração pudesse
Sentir essa certeza já.

Mas não; ou seja a selva escura
Ou seja um Dante mais diverso,
A alma é literatura
E tudo acaba em nada e verso".
(Fernando Pessoa, 6-11-1932)
Fernando Pessoa em Durban, onde residiu durante parte da sua infância e juventude.

"Minhas mesmas emoções
São coisas que me acontecem".
(Fernando Pessoa, 31-8-1932)
Última fotografia de Pessoa, tirada por Augusto Ferreira Gomes.


"Como nuvens pelo céu
Passam os sonhos por mim.
Nenhum dos sonhos é meu
Embora eu os sonhe assim.

São coisas no alto que são
Enquanto a vista as conhece,
Depois são sombras que vão
Pelo campo que arrefece.

Símbolos? Sonhos? Quem torna
Meu coração ao que foi?
Que dor de mim me transtorna?
Que coisa inútil me dói?"
(Fernando Pessoa, 17-6-1932)
Fernando Pessoa nos primeiros anos em Lisboa, após o regresso da África do Sul.

Eu tenho idéias e razões,
Conheço a cor dos argumentos
E nunca chego aos corações.

Basta pensar em sentir
Para sentir em pensar.
Meu coração faz sorrir
Meu coração a chorar.
Depois de parar de andar,
Depois de ficar e ir,
Hei de ser quem vai chegar
Para ser quem quer partir.

Viver é não conseguir.
(Fernando Pessoa, 14-6-1932)
Sammy Davis Jr. - ator, dançando na Madison Avenue, em New York. Por Burt Glinn.

"A Lua (dizem os ingleses),
É feita de queijo verde.
Por mais que pense mil vezes
Sempre uma idéia se perde.

E era essa, era, era essa,
Que haveria de salvar
Minha alma da dor da pressa
De... não sei se é desejar.

Sim, todos os meus desejos
São de estar sentir pensando...
A Lua (dizem os ingleses)
É azul de quando em quando".
(Fernando Pessoa, 14-11-1931)
A atriz Silvana Mangano, no Museu da Arte Moderna - New York, em 1956. Por Eve Arnold.

"Chove. Que fiz eu da vida?
Fiz o que ela fez de mim...
De pensada, mal vivida...
Triste de quem é assim!

Numa angústia sem remédio
Tenho febre na alma, e, ao ser,
Tenho saudade, entre o tédio,
Só do que nunca quis ter...

Quem eu pudera ter sido,
Que é dele? Entre ódios pequenos
De mim, 'stou de mim partido.
Se ao menos chovesse menos!"
(Fernando Pessoa, 23-10-1931)
Jackie Kennedy por Eve Arnold

"Uma maior solidão
Lentamente se aproxima
Do meu triste coração.

Enevoa-se-me o ser
Como um olhar a cegar,
A cegar, a escurecer.

Jazo-me sem nexo, ou fim...
Tanto nada quis de nada,
Que hoje nada o quer de mim".
(Fernando Pessoa, 23-10-1931)
Jacques Prévert com Janine e Minette

"As nuvens são sombrias
Mas, nos lados do sul,
Um bocado do céu
É tristemente azul.

Assim, no pensamento,
Sem haver solução,
Há um bocado que lembra
Que existe o coração.

E esse bocado é que é
A verdade que está
A ser beleza eterna
Para além do que há".

(Fernando Pessoa, 5-4-1931)
Obra de Henri Rousseau


"Eu amo tudo o que foi,
Tudo o que já não é,
A dor que já me não dói,
A antiga e errônea fé,
O ontem que dor deixou,
O que deixou alegria
Só porque foi, e voou
E hoje é já outro dia".


(Fernando Pessoa, 1931).

Foto de Alfred Stieglietz, Georgia O’Keeffe, 1920.

"Cai chuva do céu cinzento
Que não tem razão de ser.
Até o meu pensamento
Tem chuva nele a escorrer.

Tenho uma grande tristeza
Acrescentada à que sinto.
Quero dizer-ma mas pesa
O quanto comigo minto.

Porque verdadeiramente
Não sei se estou triste ou não.
E a chuva cai levemente
(Porque Verlaine consente)
Dentro do meu coração".


(Fernando Pessoa, 15-11-1930).

Rainha Santa Isabel, por Maria Helena, em Coimbra - 2007.

"Por quem foi que me trocaram
Quando estava a olhar pra ti?
Pousa a tua mão na minha
E, sem me olhares, sorri.

Sorri do teu pensamento
Porque eu só quero pensar
Que é de mim que ele está feito
É que tens para mo dar.

Depois aperta-me a mão
E vira os olhos a mim...
Por quem foi que me trocaram
Quando estás a olhar-me assim?"
(Fernando Pessoa)

Leonardo da Vinci, The Virgin and Child with St Anne and St John the Baptist, c. 1499–1500,The National Gallery, London.

"Minha mulher, a solidão,
Consegue que eu não seja triste.
Ah, que bom é o coração
Ter este bem que não existe!

Recolho a não ouvir ninguém,
Não sofro o insulto de um carinho
E falo alto sem que haja alguém:
Nascem-me os versos do caminho.

Senhor, se há bem que o céu conceda
Submisso à opressão do Fado,
Dá-me eu ser só - veste de seda -,
E fala só - leque animado".


(Fernando Pessoa, 27-8-1930)

Foto de Robert Doisneau, Le Fox-Terrier Au Pont des Arts, 1953.

Fernando Pessoa - Carta de Amor 6

Ophelinha:

Agradeço a sua carta. Ella trouxe-me pena e allivio ao mesmo tempo. Pena, porque estas cousas fazem sempre pena; allivio, porque, na verdade, a unica solução é essa - o não prolongarmos mais uma situação que não tem já a justificação do amor, nem de uma parte nem de outra. Da minha, ao menos, fica uma estima profunda, uma amisade inalteravel. Não me nega a Ophelinha outro tanto, não é verdade?
Nem a Ophelinha, nem eu, temos culpa nisto. Só o Destino terá culpa, se o Destino fosse gente, a quem culpas se attribuissem.
O Tempo, que envelhece as faces e os cabellos, envelhece tambem, mas mais depressa ainda, as affeições violentas. A maioria da gente, porque é estupida, consegue não dar por isso, e julga que ainda ama porque contrahiu o habito de se sentir a amar. Se assim não fosse, naão havia gente feliz no mundo. As creaturas superiores, porém, são privadas da possibilidade d'essa illusão, porque nem podem crer que o amor dure, nem, quando o sentem acabado, se enganam tomando por elle a estima, ou a gratidão, que elle deixou.
Estas cousas fazem soffrer, mas o soffrimento passa. Se a vida, que é tudo, passa por fim, como não hão de passar o amor e a dor, e todas as mais cousas, que não são mais que partes da vida?
Na sua carta é injusta para commigo, mas comprehendo e desculpo; decerto a escreveu com irritação, talvez mesmo com magua, mas a maioria da gente - homens ou mulheres - escreveria, no seu caso, num tom ainda mais acerbo, e em termos ainda mais injustos. Mas a Ophelinha tem um feitio optimo, e mesmo a sua irritação não consegue ter maldade. Quando casar, se não tiver a felicidade que merece, por certo que não será sua a culpa.
Quanto a mim...
O amor passou. Mas conservo-lhe uma affeição inalteravel, e não esquecerei nunca - nunca, creia - nem a sua figurinha engraçada e os seus modos de pequeneina, nem a sua ternura, a sua dedicação, a sua indole amoravel. Pode ser que me engane, e que estas qualidades, que lhe attribúo, fossem uma illusão minha; mas nem creio que fossem, nem, a terem sido, seria desprimor para mim que lh'as attribuisse.
Não sei o que quer que lhe devolva - cartas ou que mais. Eu preferia não lhe devolver nada, e conservar as suas cartinhas como memoria viva de uma passado morto, como todos os passados; como alguma cousa de commovedor numa vida, como a minha, em que o progresso nos annos é par do progresso na infelicidade e na desillusão.
Peço que não faça como a gente vulgar, que é sempre reles; que não me volte a cara quando passe por si, nem tenha de mim uma recordação em que entre o rancor. Fiquemos, um perante o outro, como dois conhecidos desde a infancia, que se amaram um pouco quando meninos, e, embora na vida adulta sigam outras affeições e outros caminhos, conservam sempre, num escaninho da alma, a memoria profunda do seu amor antigo e inutil
Que isto de "outras affeiçõpes" e de "outros caminhos" é consigo, Ophelinha, e não commigo. O meu destino pertence a outra Lei, de cuja existencia a Ophelinha nem sabe, e está subordinado cada vez mais á obediência a Mestres que não permittem nem perdoam.
Não é necessario que comprehenda isto. Basta que me conserve com carinho na sua lembrança, como eu, inalteravelmente, a conservarei na minha.

Fernando
29/XI/1920

Fernando Pessoa - Carta de Amor 5


Domingo 15.8.1920
Vibora:

Recebi a tua carta má, e, na verdade, não percebo como foi que nos não encontrámos nem hontem nem antes de hontem. Differença de relogios? Não creio, porque não notei, quer num dia quer noutro, ao chegar á Baixa, que o meu relogio estivesse tão errado.
Escrevo-te só estas linhas para te dizer que estarei amanhã ao meio-dia em ponto no fim da Av. das Cortes. Vães ao escriptorio da R. da Victoria á 1. Isto deve dar-te tempo. O peor é se vães acompanhada. Em todo o caso esperar-te-hei até ás 12 1/4.
Oxalá estejas melhor; mas isso não é desgosto, é viboridade, ou seja maldade.
Sempre e muito teu
Fernando

Estou escrevendo do Café Arcada ao meio dia e 3 quartos. Porisso escrevo pouco (contra o meu costume) para ver se passo na tua rua não muito longe da uma hora.
Imagem: Fernando Pessoa no Martinho da Arcada com Raul Leal, António Botto e Augusto Ferreira Gomes.

Fernando Pessoa - Carta de Amor 4

Meu Be«be»zinho lindo:

Não imaginas a graça que te achei hoje á janella da casa de tua irmã! Ainda bem que estavas alegre e que mostraste prazer em me ver (Alvaro de Campos).
Tenho estado muito triste, e além d'isso muito cansado - triste não só por te não poder ver, como tambem pelas complicações que outras pessoas teem interposto no nosso caminho. Chego a crer que a influência constante, insistente, habil d'essas pessoas; não ralhando contigo, não se oppondo de modo evidente, mas trabalhando lentamente sobre o teu espirito, venha a levar-te finalmente a não gostar de mim. Sinto-me já differente; já não és a mesma que eras no escriptorio. Não digo que tu propria tenhas dado por isso; mas dei eu, ou, pelo menos, julguei dar por isso. Oxalá me tenha enganado...
Olha, filhinha: não vejo nada claro no futuro. Quero dizer: não vejo o que vãe haver, ou o que vãe ser de nós, dado, de mais a mais, o teu feitio de cederes a todas as influencias de familia, e de em tudo seres de uma opinião contraria á minha. No escriptorio eras mais docil, mais meiga, mais amoravel.
Enfim...
Amanhã passo á mesma hora no Largo de Camões. Poderás tu apparecer á janella?
Sempre e muito teu

Fernando
27/4/1920

Fernando Pessoa - Carta de Amor 3

23/3/1920
Meu querido Be«be»sinho,

Hoje, com a quasi certeza que o Osorio não te poderá encontrar, pois, além de ter que esperar aqui pelo Valladas, tem naturalmente que ir levar assucar a casa de meu primo, quasi que de nada me serve escrever-te. Vão, em todo o caso, estas linhas, para o caso de sempre ser possivel fazer te chegar a carta ás mãos.
Ainda bem que a interrupção de ainda agora foi mesmo no fim da nossa conversa, quando iamos despedir-nos. Era justamente para evitar interrupções d'essas que eu escolhi o caminho por onde hoje iamos. Amanhã esperarei à mesma hora, sim Bébé? Não me conformo com a idéa de escrever; queria fallar-te, ter-te sempre ao pé de mim, não ser necessário mandar-te cartas. As cartas são signais de separação - signais, pelo menos, pela necessidade de as escrevermos, de que estamos affastados.
Não te admires de certo laconismo nas minhas cartas. As cartas são para as pessoas a quém não interessa mais fallar: para essas escrevo de boa vontade. A minha mãe, por exemplo, nunca escrevi de boa vontade, exactemente porque gosto muito d'ella.
Quero que sintas isto, que saibas que eu sinto e penso assim a este respeito, para não me achares secco, frio, indifferente. Eu não o sou, meu Bébé-menininho, minha almofadinha côr-de-rosa para pregar beijos (que grande disparate!)
Mando um meiguinho chinez.
E adeus até amanhã, meu anjo.
Um quarteirão de milhares de beijos do teu, sempre teu

Fernando
O Osorio leva o chinez dentro de uma caixa de phosphoros.

Fernando Pessoa - Carta de Amor 2

Ophelinha:

Para me mostrar o seu desprezo, ou pelo menos, a sua indifferença real, não era preciso o disfarce transparente de um discurso tão comprido, nem da serie de "razões" tão pouco sinceras como convincentes, que me escreveu. Bastava dizer-m'o. Assim, entendo da mesma maneira, mas dõe-me mais.
Se prefere a mim o rapaz que namora, e de quem naturalmente gosta muito, como lhe posso eu levar isso a mal? A Ophelinha pode preferir quem quizer: não tem obrigação - creio eu - de amar-me, nem, realmente necessidade (a não ser que queira divertir-se) de fingir que me ama.
Quem ama verdadeiramente não escreve cartas que parecem requerimentos de advogado. O amor não estuda tanto as cousas, nem trata os outros como réus que é preciso "entalar".
Porque não é franca para commigo? Que empenho tem em fazer soffrer quem não lhe fez mal - nem a si, nem a ninguém -, a quem tem por peso e dor bastante a propria vida isolada e triste, e não precisa de que lh'a venham accrescentar creando-lhe esperanças falsas, mostrando-lhe affeições fingidas, e isto sem que se perceba com que interesse, mesmo de divertimento, ou com que proveito, mesmo de troça.
Reconheço que tudo isto é comico, e que a parte mais comica d'isto tudo sou eu.
Eu-proprio acharia graça, se não a amasse tanto, e se tivesse tempo para pensar em outra cousa que não fosse no soffrimento que tem prazer em causar-me sem que eu, a não ser por amál-a, o tenha merecido, e creio bem qeu amál-a não é razão bastante para o merecer. Enfim...
Ahi fica o "documento escripto" que me pede. Reconhece a minha assignatura o tabellião Eugenio Silva.
1.3.1920.
Fernando Pessoa

Fernando Pessoa - Carta de Amor 1



19.2.1920
ás 4 da madrugada

Meu amorzinho, meu Bébé querido:

São cerca de 4 horas da madrugada e acabo, apezar de ter todo o corpo dorido e a pedir repouso, de desistir definitivamente de dormir. Ha trez noites que isto me acontece, mas a noite de hoje, então, foi das mais horriveis que tenho passado em minha vida. Felizmente para ti, amorzinho, não podes imaginar. Não era só a angina, com a obrigação estupida de cuspir de dois em dois minutos, que me tirava o somno. É que, sem ter febre, eu tinha delirio, sentia-me endoidecer, tinha vontade de gritar, de gemer em voz alta, de mil cousas disparatadas. E tudo isto não só por influencia directa do mal estar que vem da doença, mas porque estive todo o dia de hontem arreliado com cousas, que se estão atrazando, relativas á vinda da minha família, e ainda por cima recebi, por intermedio de meu primo, que aqui veio ás 7 1/2, uma serie de noticias desagradaveis, que não vale a pena contar aqui, pois, felizmente, meu amor, te não dizem de modo algum respeito.
Depois, estar doente exactamente numa occasião em que tenho tanta cousa urgente a fazer, tanta cousa que não posso delegar em outras pessoas.
Vês, meu Bébé adorado, qual o estado de espirito em que tenho vivido estes dias, estes dois ultimos dias sobretudo? E não imaginas as saudades doidas, as saudades constantes que de ti tenho tido. Cada vez a tua ausencia, ainda que seja só de um dia para o outro, me abate; quanto mais hão havia eu de sentir o não te ver, meu amor, ha quasi três dias!
Diz-me uma cousa, amorzinho: Porque é que te mostras tão abatida e tão profundamente triste na tua segunda carta - a que mandaste hontem pelo Osorio? Comprehendo que estivesses tambem com saudades; mas tu mostras-te de um nervosismo, de uma tristeza, de um abatimento tães, que me doeu immenso ler a tua cartinha e ver o que soffrias. O que te aconteceu, amôr, além de estarmos separados? Houve qualquer cousa peor que te acontecesse? Porque fallas num tom tão desesperado do meu amor, como que duvidando d'elle, quando não tens para isso razão nenhuma?
Estou inteiramente só - pode dizer-se; pois aqui a gente da casa, que realmente me tem tratado muito bem, é em todo o caso de cerimonia, e só me vem trazer caldo, leite ou qualquer remedio durante o dia; não me faz, nem era de esperar, companhia nenhuma. E então a esta hora da noite parece-me que estou num deserto; estou com sêde e não tenho quem me dê qualquer cousa a tomar; estou meio-doido com o isolamento em que me sinto e nem tenho quem ao menos vele um pouco aqui enquanto eu tentasse dormir.
Estou cheio de frio, vou estender-me na cama para fingir que repouso. Não sei quando te mandarei esta carta ou se acrescentarei ainda mais alguma cousa.
Ai, meu amor, meu Bébé, minha bonequinha, quem te tivesse aqui! Muitos, muitos, muitos, muitos, muitos beijos do teu, sempre teu
Fernando

Ah quanta melancolia!
Quanta, quanta solidão!
Aquela alma, que vazia,
Que sinto inútil e fria
Dentro do meu coração!

Que angústia desesperada!
Que mágoa que sabe a fim!
Se a nau foi abandonada,
E o cego caiu na estrada -
Deixai-os, que é tudo assim.

Sem sossego, sem sossego,
Nenhum momento de meu
Onde for que a alma emprego -
Na estrada morreu o cego
A nau desapareceu.
(Fernando Pessoa, 3-9-1924).

Belo Horizonte - Década30 - Terreno da Praça Sete em 1930, preparado para o início das obras do Cine Theatro Brasil.

DOBRE



Peguei no meu coração
E pu-lo na minha mão

Olhei-o como quem olha
Grãos de areia ou uma folha.

Olhei-o pávido e absorto
Como quem sabe estar morto;

Com a alma só comovida
Do sonho e pouco da vida.


(Fernando Pessoa, 1913)

Foto: decada30 - Equipe de lanterninhas dos primeiros anos do Cine Brasil.
Outros terão
Um lar, quem saiba, amor, paz, um amigo.
A inteira, negra e fria solidão
Está comigo.

A outros talvez
Há alguma coisa quente, igual, afim
No mundo real. Não chega nunca a vez
Para mim.

"Que importa?"
Digo, mas só Deus sabe que o não creio.
Nem um casual mendigo à minha porta
Sentar-se veio.

"Quem tem de ser?"
Não sofre menos quem o reconhece.
Sofre quem finge desprezar sofrer
Pois não esquece.

Isto até quando?
Só tenho por consolação
Que os olhos se me vão acostumando
À escuridão.
(Fernando Pessoa, 13-1-1920).

Eros e Psique

...E assim vêdes, meu Irmão, que as verdades
que vos foram dadas no Grau de Neófito, e
aquelas que vos foram dadas no Grau de Adepto
Menor, são, ainda que opostas, a mesma verdade.

(Do Ritual Do Grau De Mestre Do Átrio
Na Ordem Templária De Portugal)


Conta a lenda que dormia
Uma Princesa encantada
A quem só despertaria
Um Infante, que viria
De além do muro da estrada.

Ele tinha que, tentado,
Vencer o mal e o bem,
Antes que, já libertado,
Deixasse o caminho errado
Por o que à Princesa vem.

A Princesa Adormecida,
Se espera, dormindo espera,
Sonha em morte a sua vida,
E orna-lhe a fronte esquecida,
Verde, uma grinalda de hera.

Longe o Infante, esforçado,
Sem saber que intuito tem,
Rompe o caminho fadado,
Ele dela é ignorado,
Ela para ele é ninguém.

Mas cada um cumpre o Destino
Ela dormindo encantada,
Ele buscando-a sem tino
Pelo processo divino
Que faz existir a estrada.

E, se bem que seja obscuro
Tudo pela estrada fora,
E falso, ele vem seguro,
E vencendo estrada e muro,
Chega onde em sono ela mora,

E, inda tonto do que houvera,
À cabeça, em maresia,
Ergue a mão, e encontra hera,
E vê que ele mesmo era
A Princesa que dormia.
(Fernando Pessoa)

LIBERDADE

Ai que prazer
não cumprir um dever.
Ter um livro para ler
e não o fazer!
Ler é maçada,
estudar é nada.
O sol doira sem literatura.
O rio corre bem ou mal,
sem edição original.
E a brisa, essa, de tão naturalmente matinal
como tem tempo, não tem pressa...

Livros são papéis pintados com tinta.
Estudar é uma coisa em que está indistinta
A distinção entre nada e coisa nenhuma.

Quanto melhor é quando há bruma.
Esperar por D. Sebastião,
Quer venha ou não!

Grande é a poesia, a bondade e as danças...
Mas o melhor do mundo são as crianças,
Flores, música, o luar, e o sol que peca
Só quando, em vez de criar, seca.

E mais do que isto
É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças,
Nem consta que tivesse biblioteca...

(Fernando Pessoa)

FRESTA

Em meus momentos escuros
Em que em mim não há ninguém,
E tudo é névoas e muros
Quanto a vida dá ou tem,

Se, um instante, erguendo a fronte
De onde em mim sou aterrado,
Vejo o longínquo horizonte
Cheio de sol posto ou nado

Revivo, existo, conheço,
E, ainda que seja ilusão
O exterior em que me esqueço,
Nada mais quero nem peço.
Entrego-lhe o coração.
(Fernando Pessoa)
Grandes mistérios habitam
O limiar do meu ser,
O limiar onde hesitam
Grandes pássaros que fitam
Meu transpor tardo de os ver.

São aves cheias de abismo,
Como nos sonhos as há.
Hesito se sondo e cismo,
E à minha alma é cataclismo
O limiar onde está.

Então desperto do sonho
E sou alegre da luz,
Inda que em dia tristonho;
Porque o limiar é medonho
E todo passo é uma cruz.
(Fernando Pessoa, 2-10-1933)
Tenho tanto sentimento
Que é freqüente persuadir-me
De que sou sentimental,
Mas reconheço, ao medir-me,
Que tudo isso é pensamento,
Que não senti afinal.

Temos, todos que vivemos,
Uma vida que é vivida
E outra vida que é pensada,
E a única vida que temos
É essa que é dividida
Entre a verdadeira e a errada.

Qual porém é a verdadeira
E qual errada, ninguém
Nos saberá explicar;
E vivemos de maneira
Que a vida que a gente tem
É a que tem que pensar.
(Fernando Pessoa, 18-9-1933)
Entre o sono e sonho,
Entre mim e o que em mim
É o quem eu me suponho
Corre um rio sem fim.

Passou por outras margens,
Diversas mais além,
Naquelas várias viagens
Que todo o rio tem.

Chegou onde hoje habito
A casa que hoje sou.
Passa, se eu me medito;
Se desperto, passou.

E quem me sinto e morre
No que me liga a mim
Dorme onde o rio corre -
Esse rio sem fim.
(Fernando Pessoa, 11-9-1933)
O que me dói não é
O que há no coração
Mas essas coisas lindas
Que nunca existirão...

São as formas sem forma
Que passam sem que a dor
As possa conhecer
Ou as sonhar o amor.

São como se a tristeza
Fosse árvore e, uma a uma,
Caíssem suas folhas
Entre o vestígio e a bruma.
(Fernando Pessoa, 5-9-1933)
Sorriso audível das folhas
Não és mais que a brisa ali
Se eu te olho e tu me olhas,
Quem primeiro é que sorri?
O primeiro a sorrir ri.

Ri e olha de repente
Para fins de não olhar
Para onde nas folhas sente
O som do vento a passar
Tudo é vento e disfarçar.

Mas o olhar, de estar olhando
Onde não olha, voltou
E estamos os dois falando
O que se não conversou
Isto acaba ou começou?
(Fernando Pessoa, 27-11-1930)

O ANDAIME

"O tempo que eu hei sonhado
Quantos anos foi de vida!
Ah, quanto do meu passado
Foi só a vida mentida
De um futuro imaginado!

Aqui à beira do rio
Sossego sem ter razão.
Este seu correr vazio
Figura, anônimo e frio,
A vida vivida em vão.

A 'sp'rança que pouco alcança!
Que desejo vale o ensejo?
E uma bola de criança
Sobre mais que minha 's'prança,
Rola mais que o meu desejo.

Ondas do rio, tão leves
Que não sois ondas sequer,
Horas, dias, anos, breves
Passam - verduras ou neves
Que o mesmo sol faz morrer.

Gastei tudo que não tinha.
Sou mais velho do que sou.
A ilusão, que me mantinha,
Só no palco era rainha:
Despiu-se, e o reino acabou.

Leve som das águas lentas,
Gulosas da margem ida,
Que lembranças sonolentas
De esperanças nevoentas!
Que sonhos o sonho e a vida!

Que fiz de mim? Encontrei-me
Quando estava já perdido.
Impaciente deixei-me
Como a um louco que teime
No que lhe foi desmentido.

Som morto das águas mansas
Que correm por ter que ser,
Leva não só lembranças -
Mortas, porque hão de morrer.

Sou já o morto futuro.
Só um sonho me liga a mim -
O sonho atrasado e obscuro
Do que eu devera ser - muro
Do meu deserto jardim.

Ondas passadas, levai-me
Para o alvido do mar!
Ao que não serei legai-me,
Que cerquei com um andaime
A casa por fabricar".
(Fernando Pessoa)
Vaga, no azul amplo solta,
Vai uma nuvem errando.
O meu passado não volta.
Não é o que estou chorando.

O que choro é diferente.
Entra mais na alma da alma.
Mas como, no céu sem gente,
A nuvem flutua calma.

E isto lembra uma tristeza
E a lembrança é que entristece,
Dou à saudade a riqueza
De emoção que a hora tece.

Mas, em verdade, o que chora
Na minha amarga ansiedade
Mais alto que a nuvem mora,
Está para além da saudade.

Não sei o que é nem consinto
À alma que o saiba bem.
Visto da dor com que minto
Dor que a minha alma tem.
(Fernando Pessoa, 29-3-1931)
Não: não digas nada!
Supor o que dirá
A tua boca velada
É ouvi-lo já

É ouvi-lo melhor
Do que o dirias.
O que és não vem à flor
Das frases e dos dias.

És melhor do que tu.
Não digas nada: sê!
Graça do corpo nu
Que invisível se vê.
(Fernando Pessoa, 5/6-2-1931)
Gato que brincas na rua
Como se fosse na cama,
Invejo a sorte que é tua
Porque nem sorte se chama.

Bom servo das leis fatais
Que regem pedras e gentes,
Que tens instintos gerais
E sentes só o que sentes.

És feliz porque és assim,
Todo o nada que és é teu.
Eu vejo-me e estou sem mim,
Conheço-me e não sou eu.
(Fernando Pessoa, 1-1931)

Contemplo o lago mudo
Que uma brisa estremece.
Não sei se penso em tudo
Ou se tudo me esquece.

O lago nada me diz,
Não sinto a brisa mexê-lo
Não sei se sou feliz
Nem se desejo sê-lo.

Trêmulos vincos risonhos
Na água adormecida.
Por que fiz eu dos sonhos
A minha única vida?
(Fernando Pessoa, 4-8-1930)

Retrato de Fernando Pessoa feito por João Luiz Roth.


"Sonho. Não sei quem sou neste momento.
Durmo sentindo-me. Na hora calma
Meu pensamento esquece o pensamento,
Minha alma não tem alma.

Se existo é um erro eu o saber. Se acordo
Parece que erro. Sinto que não sei.
Nada quero nem tenho nem recordo.
Não tenho ser nem lei.

Lapso da consciência entre ilusões,
Fantasmas me limitam e me contêm.
Dorme insciente de alheios corações,
Coração de ninguém".
(Fernando Pessoa, 6-1-1923)

Pessoa.Retratado por João L. Roth

sexta-feira, junho 29, 2007

Quando olho para mim não me percebo



"Quando olho para mim não me percebo.
Tenho tanto a mania de sentir
Que me extravio às vezes ao sair
Das próprias sensações que eu recebo.

O ar que respiro, este licor que bebo
Pertencem ao meu modo de existir,
E eu nunca sei como hei-de concluir
As sensações que a meu pesar concebo.

Nem nunca, propriamente, reparei
Se na verdade sinto o que sinto. Eu
serei tal qual pareço em mim? serei

Tal qual me julgo verdadeiramente?
Mesmo ante as sensações sou um pouco ateu,
Nem sei bem se sou eu quem em mim sente".

(Álvaro de Campos)
(Robert Doisneau, 1945)
"A vontade do homem que quer achar-se culpado e condenável até ao extremo da impossibilidade de expiação, a vontade de se ver punido sem que a punição possa alguma vez ser equivalente à culpa, a vontade de infectar e envenenar o fundamento último das coisas com o problema da punição e da culpa para assim rasgar de uma vez por todas uma saída deste labirinto de «ideias fixas», a vontade de erigir um ideal — o ideal do «Santo Deus» — para poder, perante ele, estar certo da sua absoluta indignidade. Ai! Um «ai» por esta besta-homem, louca e triste! Que invenções as suas, que coisas contra natura, que paroxismos de absurdo, que bestialidade da ideia se manifesta imediatamente assim que a impedem por um momento de ser besta de acção!... Tudo isto é mais do que interessante, mas tudo isto é também de uma tristeza tão sombria, tão deletéria, que é preciso proibirmo-nos vigorosamente de olhar por demasiado tempo para dentro desse abismo! O que aqui temos é doença! Sem dúvida, a doença mais terrível que até hoje grassou entre os homens!... E se alguém, no meio dessa noite de martírio e de absurdo, ainda consegue ouvir os ecos (embora hoje já ninguém tenha ouvidos para tais coisas!...) do grito de «amor», do grito ansioso de êxtase, do grito da redenção pelo amor, só lhe resta fugir, tomado de um pavor invencível... Há no homem tanto de execrável!... O mundo é um manicómio, e há demasiado tempo!...
(Friedrich Nietzsche, em Para a Genealogia da Moral)
"Nós, homens modernos, somos os herdeiros de uma vivissecção da consciência, de um acto de tortura que um animal praticou sobre si mesmo durante milhares de anos: é aí que reside a nossa mais longa prática, porventura o nosso talento, e decerto é aí que se exerce todo o nosso refinamento e que o nosso gosto se vê satisfeito. Há demasiado tempo que o homem olha «de lado» para as suas inclinações naturais, como coisa má, de tal modo que essas inclinações acabaram por se entrelaçar com a «má consciência». Uma tentativa em sentido inverso seria, em si, possível... mas haverá alguém suficientemente forte para a levar a cabo? Uma tentativa para entrelaçar com a má consciência as nossas inclinações não-naturais, todas aquelas aspirações ao além, as aspirações contrárias ao sentido, aos instintos, à natureza, ao animal, resumindo, os ideais até hoje conhecidos, todos os ideais que são hostis à vida e que caluniam o mundo. Mas a quem nos havemos de dirigir hoje com tais esperanças e com tais pretensões...? Porque teríamos desde logo contra nós precisamente os homens bons; e, para além desses, como é evidente, teríamos os acomodados, os resignados, os frívolos, os exaltados e os fatigados... Haverá alguma coisa que ofenda mais profundamente, que afaste mais radicalmente do que alguém dar a ver um pouco do rigor e da elevação com que a si próprio se trata? E, pelo contrário, quanta simpatia e agrado nos mostra toda a gente quando procedemos como toda a gente e quando nos «deixamos ir» como toda a gente...!'
(Friedrich Nietzsche, em Para a Genealogia da Moral)

(...) mas acredite num amor que está guardado para si como uma herança e acredite que nesse amor existe uma força e uma bênção que não tem de perder por mais longe que vá!
(Rainer Maria Rilke, em Cartas a Um Jovem Poeta)
Foto de Eve Arnold

Novembro


"O sabor dos derradeiros dias
Roda ainda na casa e pela rua
Folhas vermelhas gemem por morrer
Mas nós não nos lembramos

O inverno varre o céu e enche
O mundo inteiro de um sonho de vazio
Temos de estar sós e não ter nada
Horas sem fim na casa inabitada

Parece que partimos. Cada dia
Mais, profundo na noite se aprofunda
E nós queremos partir - todos os cantos
Empalidecem ao pé desta descida
Até às pedras geladas do silêncio

Olhamos à janela de olhos fitos
Longe a claridade além dos rios
Queremos ir com o vento com o perigo
Queremos a injustiça do castigo
Somos nós que a nós mesmos nos matamos
E com mais amor do que quando amamos
Sentimos sobre nós descer o frio".
(Sophia de Mello Breyner Andresen)
Foto de Josef Koudelka

A casa da areia


Face ao mar, orgulhosa no topo do areal,
só madeira e zinco sobre pilares de cimento
ao sabor dos quatro ventos. O quintal
das traseiras sempre uma festa, frango
no churrasco, alegria nos copos. Depois

a Isilda casaria com o Freitas,
a Ermelinda ia ficar para tia
e o Horácio dava em droga.
O Neca, o Tino e o Mando foram
à vida, cada qual para seu lado.

Na velha casa virada à baía,
além do ranger da maneira
batida pelo vento e a areia
apenas ficaram a avó Carminda
e a velha cadela «Deixa - falar».

(Rui Knoplfi, em O Monhé das Cobras)
Foto de Foto de Henri Cartier-Bresson


“A partir de agora tomo conta de si”, disse-me Sartre quando me anunciou que passara. Tinha prazer nas amizades femininas. A primeira vez que o vira na Sorbonne usava chapéu e conversava animadamente com um mulherão da agrégation que eu achava muito feia; desagradara-lhe depressa; ligara-se com outra, mais bonita, mas que dava complicações e com quem em breve se zangara. Quando Herbaud lhe falara de mim quisera logo conhecer-me e agora estava todo contente por poder agarrar-me; quanto a mim, parecia-me que todo o tempo que não passava com ele era tempo perdido. Durante os quinze dias que durou a oral do concurso, só nos separávamos para ir dormir. Íamos à Sorbonne fazer as provas e ouvir as recomendações dos nossos colegas. Saíamos com os Nizan. Tomávamos bebidas no Balzar com Aron, que fazia o serviço militar na meteorologia, com Politzer, que estava agora inscrito no Partido Comunista. A maioria das vezes passávamos os dois sozinhos. No cais do Sena, Sartre comprava-me exemplares do Pardaillan e do Fantomas, que preferia de longe à Correspondência de Rivière e Fournier; levava-me à noite ver fitas de cow-boys, pelos quais me apaixonei como neófita, pois era sobretudo especialista no cinema abstracto e no cinema de arte. Nas esplanadas dos cafés ou bebendo cocktails no Falstaff durante horas, conversávamos.
Nunca pára de pensar”, dissera Herbaud. Isso não significava que segregava a todo o momento fórmulas ou teorias: detestava o pedantismo. Mas o seu espírito estava sempre alerta. Ignorava os torpores, as sonolências, as fugas, as esquivas, as trevas, a prudência, o respeito. Interessava-se por tudo e nunca aceitava nada como sendo definitivo. Diante de um objecto, em vez de o escamotear a favor de um mito, de uma palavra, de uma sensação, de uma ideia preconcebida, contemplava-o; não o largava antes de ter compreendido as suas causas, os seus efeitos e os seus múltiplos sentidos. Não perguntava a si próprio o que se devia pensar, o que seria excitante ou inteligente pensar-se: só o que ele próprio pensava. Assim, decepcionava os estetas ávidos de uma elegância comprovada. Ouvindo-o dois anos antes fazer um exposé, Riesmann, deslumbrado pela logomaquia de Baruzi, dissera-me tristemente: “Não tem génio!” Durante uma aula sobre a “classificação” a sua boa-fé minuciosa pusera esse ano à prova a nossa paciência; acabara por forçar o nosso interesse. Interessava sempre as pessoas a quem a novidade não afastava, pois não tendo em vista a originalidade, não caía em nenhum conformismo. Obstinada, ingénua, a sua atenção apreendia na sua profusão as coisas bem vivas. Como o meu pequeno mundo era apertado, ao lado desse universo abundante! Mais tarde só certos loucos me inspiraram uma humildade parecida, quando descobriam numa pétala de rosa um encadeamento de intrigas tenebrosas.
Falávamos de uma porção de coisas, mas particularmente de um assunto que me interessava mais do que todos: eu própria. Quando pretendiam explicar-me, as outras pessoas anexavam-me para o seu mundo, irritavam-me; Sartre, pelo contrário, tentava situar-me no meu próprio sistema, compreendia-me à luz dos meus próprios valores, dos meus próprios projectos. Ouviu-me sem entusiasmo quando lhe contei a minha história com Jacques; para uma mulher educada como eu fora, era talvez difícil evitar o casamento: mas não pensava que isso desse bom resultado. Em todo o caso eu devia preservar o que havia de mais admirável em mim: o meu gosto pela vida, a minha curiosidade, a minha vontade de escrever. Não só me encorajava nesse projecto como propunha ajudar-me. Mais velho do que dois anos – que aproveitara -, tendo começado mais cedo e melhor, sabia muito mais do que eu sobre todos os assuntos: mas a verdadeira superioridade que ele reconhecia em si, e que me saltava aos olhos, era essa paixão tranquila e violenta que o lançava para os seus futuros livros. Noutros tempos eu desprezara as crianças que tinham menos ardor a brincar ao croquet ou a estudar: eis que encontrava uma pessoa aos olhos de quem os meus frenezins pareciam tímidos. E com efeito, se me comparava com ele, as minhas febres eram mornas! Achara-me extraordinária porque não conseguia conceber a vida sem escrever: ele vivia para escrever.Não contava, decerto, levar uma vida de homem fechado num escritório; detestava as rotinas e as hierarquias, as carreiras, os lares; os direitos e os deveres, todas as coisas sérias da vida. Resignava-se mal à ideia de ter uma profissão, colegas, superiores, regras a observar e a impor; nunca seria um pai de família nem um homem casado. Com o romantismo da época e dos seus vinte e três anos, sonhava com grandes viagens: a Constantinopla, onde confraternizaria com os estivadores; embrigar-se-ia nas caves com os chulos; daria a volta ao globo, e nem os párias das Índias, nem os popes do monte Atlas, nem os pescadores da Terra Nova teriam segredos para ele. Não criaria raízes em parte nenhuma, não acarretaria qualquer posse: não para ficar disponível em vão, mas para testemunhar de tudo. Todas as suas experiências deviam aproveitar à sua obra, e afastava categoricamente as que pudessem diminuí-la. Sobre este assunto discutimos firme. Eu admirava, pelo menos em teoria, as grandes desordens, as vidas perigosas, os homens perdidos, os excessos de álcool, de droga, de paixão. Sartre mantinha que quando se tem alguma coisa a dizer qualquer desperdício é criminoso. A obra de arte, a obra literária, era aos seus olhos um fim absoluto; tinha em si a sua razão de ser, a do seu criador e até mesmo –ele não o dizia, mas eu suspeitava de que estava persuadido – a do universo inteiro. As contestações metafísicas faziam-no encolher os ombros. Interessava-se pelas questões políticas e sociais, simpatizava com a posição de Nizan; mas o seu assunto era escrever, o resto só vinha depois. Aliás, era então mais anarquista do que revolucionário; achava detestável a sociedade tal como ela era, mas não detestava detestá-la; o que chamava a sua “estética de oposição” acomodava-se perfeitamente com a existência de imbecis e malvados e até a exigia: se não houvesse nada a abater, a combater, a literatura não teria sido grande coisa.
Com algumas diferenças, havia um grande parentesco entre a sua atitude e a minha. Não havia nada de mundano nas suas ambições. Censurava o meu vocabulário espiritualista, mas também era uma salvação que procurava na literatura; os livros introduziam neste mundo deploravelmente contingente uma necessidade que abraçava também o seu autor; certas coisas tinham de ser ditas por ele e então todo ele seria justificado. Tinha juventude bastante para se comover com o seu destino quando ouvia um tema de saxofone depois de beber três Martinis; se fosse preciso, teria aceite permanecer anónimo: o importante era o triunfo das ideias, não o seu próprio êxito. Não pensava – como me acontecera pensar – que era “alguém”, que tinha “valor”; mas considerava que importantes verdades – talvez fosse ao ponto de pensar: a Verdade – se tinham revelado a ele e que tinha por missão impô-las ao mundo. Em cadernos que me mostrou, nas suas conversas e até mesmo nos seus trabalhos escolares, afirmava com teimosia um conjunto de ideias cuja originalidade e coerência espantavam os amigos. (…)
Tive a evidência que escreveria um dia uma obra filosófica que contaria. Mas não facilitava a tarefa, pois não tinha a intenção de compor, segundo as regras tradicionais, um tratado teórico. Gostava tanto de Stendhal como de Espinosa e recusava-se a separar a filosofia da literatura. A seus olhos, a contingência não era uma noção abstracta mas uma dimensão real do mundo: era preciso utilizar todos os recursos da arte para tornar sensível ao coração essa secreta “fraqueza” que via no homem e nas coisas. A tentativa, para a época, era muito insólita; era impossível tomar inspiração numa moda ou num modelo: tanto me impressionara o pensamento de Sartre pela sua maturidade como fiquei desconcertada com a inabilidade dos ensaios onde o exprimia; a fim de a apresentar na sua singular verdade, recorria ao mito. (…) Ele apercebia-se desta incapacidade, mas não se inquietava; de qualquer forma nenhum sucesso bastaria para fundar a sua confiança inconsiderada no futuro. Sabia o que queria fazer e tinha a vida à sua frente: acabaria por fazê-lo. Não duvidei um só instante: a sua saúde, o seu bom humor ultrapassavam todos os obstáculos. Manifestamente a sua convicção recobria uma resolução tão radical que mais dia menos dia, de uma maneira ou de outra, teria o seu fruto.
Era a primeira vez na minha vida que me sentia intelectualmente dominada por outrem. Muito mais velhos que eu, Garric, Nodier tinham-me impressionado: mas de longe; vagamente, sem que eu me comparasse com eles. Com Sartre, todos os dias, durante o dia inteiro, eu me comparava a ele e nas nossas discussões não me mostrava à altura. No Luxemburgo, uma manhã, perto da Fonte Médicis, expus-lhe essa moral pluralista que eu construíra para justificar as pessoas de quem gostava mas a quem não queria assemelhar-me: desfê-la em pedaços. Eu estava agarrada a ela porque me autorizava a tomar como árbitro do bem e do mal o meu coração; debati-me durante três horas. Tive de reconhecer a minha derrota; além disso, apercebera-me durante a conversa que muitas das minhas opiniões só repousavam em princípios, má-fé ou incoerência, que as minhas ideias eram confusas. “Já não tenho a certeza do que penso, nem sequer de pensar.”, escrevi decepcionada. Não punha nisso nenhum amor-próprio. Era muito mais curiosa do que imperiosa, gostava mais de aprender do que brilhar. Mas mesmo assim, depois de tantos anos de arrogante solidão, era um acontecimento sério descobrir que não era nem única, nem a primeira: era uma entre muitos e bruscamente insegura das minhas verdadeiras capacidades. Porque Sartre não era o único a obrigar-me à modéstia: Nizan, Aron, Politzer tinham sobre mim um avanço considerável. Eu preparara o concurso à pressa: a cultura deles era mais sólida do que a minha, estavam ao corrente de uma porção de novidades que eu ignorava, tinham o hábito da discussão; e, sobretudo, eu tinha falta de método e de perspectiva; o universo intelectual era para mim uma vasta confusão onde eu caminhava às apalpadelas; quanto a eles, a sua busca era, pelo menos de um modo geral, orientada. (…) Todos eles tinham tirado muito mais radicalmente do que eu as consequências da inexistência de Deus e trazido a filosofia do céu para a terra. O que também me impressionava era que tinham uma ideia bastante precisa dos livros que queriam escrever. Eu repetira que “diria tudo”; era muito e muito pouco. Descobri com inquietação que o romance põe mil problemas, do que eu nunca suspeitara.
Mas não perdi a coragem; o futuro parecia-me bruscamente mais difícil do que eu contara, mas era também mais real e mais seguro; em vez de possibilidades sem forma, eu via abrir-se diante de mim um campo claramente definido, com os seus problemas, as suas tarefas, os seus materiais, os seus instrumentos, as suas resistências. Já não me interrogava: o que fazer? Havia tudo a fazer; tudo o que outrora desejara fazer: combater o erro, encontrar a verdade, dizê-la, iluminar o mundo, talvez até ajudá-lo a mudar. Precisaria de tempo, esforço para cumprir nem que fosse só uma parte das promessas que fizera; mas isso não me assustava. Nada fora ganho: tudo era possível.
Além disso, uma grande oportunidade me era dada: diante desse futuro, bruscamente já não estava sozinha. Até então, os homens de que eu gostara – Jacques e, em menor grau, Herbaud – eram de uma espécie diferente da minha: desenvoltos, fugidios, um pouco incoerentes, marcados por uma espécie de graça funesta; era impossível comunicar com eles sem reserva. Sartre respondia exactamente ao voto dos meus quinze anos: era o sósia onde eu encontrava, levadas à incandescência, todas as minhas manias. Com ele poderia partilhar sempre tudo. Quando o deixei no princípio de Agosto sabia que nunca mais sairia da minha vida.
(Simone de Beauvoir, em Memórias de Uma Menina Bem-Comportada)
"Dostoievsky escreve: "Se Deus não existisse, tudo seria permitido. Aí se situa o ponto de partida do existencialismo. Com efeito, tudo é permitido se deus não existe, fica o homem, por conseguinte, abandonado, já que não encontra em si, nem fora de si, uma possibilidade a que se apegue. Antes de mais nada não há desculpas para ele. não há determinismo, o homem é livre, o homem é liberdade.Se deus não existe, não encontramos diante de nós valores ou imposições que nos legitimem o comportamento. Assim, não temos nem atrás de nós, nem diante de nós, no domínio luminoso dos valores, justificações ou desculpas. Estamos sós e sem desculpas".
(Jean-Paul Sartre, em O Existencialismo é um Humanismo)

Endecha dos mais Novos

"Enquanto o nosso coração voraz
bate a descompasso com o da Terra,
não queremos ripostar demais à guerra,
fugimos de apostar demais na paz.

Compêndios de nojo, actas de festa,
são escrita tremida por nós,
mas não se lembrem doutores de erguer a voz
a dizer o que purga e o que molesta.

Só a voz do sangue ouvimos bem
quando ao leme do ventre almareámos;
fomos inocentes, já nos naufragámos,
corpos de delito, almas de refém".
(Luiza Neto Jorge, in poesia)


"Quem mente e se desculpa declarando: nem toda a gente faz assim, é alguém que não está à vontade com a sua consciência; porque o facto de mentir implica um valor universal atribuído à mentira. Ainda quando a disfarcemos, a angústia aparece".
(Jean-Paul Sartre, in O Existêncialismo é um Humanismo)
Foto de Foto de Henri Cartier-Bresson, Barcelona, 1933.

"Pois só há uma maneira de falar de nada, é falar de nada como se fosse alguma coisa, tal como só há uma maneira de falar de Deus, é falar dele como se fosse um homem, o que, é claro, ele foi, em certo sentido, por uns tempos, e só há uma maneira de falar do homem, e isso até os nossos antropólogos perceberam, é falar dele como se fosse uma térmita".
(Samuel Beckett)

As Mãos


"(...) as mãos são dois livros abertos, não pelas razões, supostas ou autênticas, da quiromancia, com as suas linhas do coração e da vida, da vida, meus senhores, ouviram bem, da vida, mas porque falam quando se abrem ou se fecham, quando acariciam ou golpeiam, quando enxugam uma lágrima ou disfarçam um sorriso, quando se pousam sobre um ombro ou acenam um adeus, quando trabalham, quando estão quietas, quando dormem, quando despertam, e então a morte, terminada a observação, concluiu que não é verdade que o antónimo da presunção seja a humildade, mesmo que o estejam jurando a pés juntos todos os dicionários do mundo, coitados dos dicionários, que têm de governar-se eles e governar-nos a nós com as palavras que existem, quando são tantas as que ainda faltam, por exemplo, essa que iria ser o contrário activo da presunção, porém em nenhum caso a rebaixada cabeça da humildade, essa palavra que vemos claramente escrita na cara e nas mãos do violoncelista, mas que não é capaz de dizer-nos como se chama".
(José Saramago, em As Intermitências da Morte)
Foto de Foto de Henri Cartier-Bresson

3 de Outubro
"Vivem-se uns momentos estranhos. Ninguém pode aceitar a paz de Hitler; mas que guerra é que se vai fazer? Que significa precisamente a palavra «guerra»? Há um mês, quando foi impressa em letras enormes nos jornais, era um horror informe, qualquer coisa de confuso, mas forte. Agora já não está em parte nenhuma, nem é nada. Sinto-me descontraída e vaga, espero nem sei bem o quê. Parece que toda a gente está à espera. Aliás, é isso que impressiona logo, através dos livros de Pierrefeu, na história da guerra de 14: é uma espera de quatro anos, intercalada de massacres completamente inúteis; dir-se-ia que é o tempo que trabalha e só ele".
(Simone de Beauvoir em A Força da Idade)
Foto de Beauvoir, por Henri Cartier-Bresson