sexta-feira, junho 29, 2007

"Nós, homens modernos, somos os herdeiros de uma vivissecção da consciência, de um acto de tortura que um animal praticou sobre si mesmo durante milhares de anos: é aí que reside a nossa mais longa prática, porventura o nosso talento, e decerto é aí que se exerce todo o nosso refinamento e que o nosso gosto se vê satisfeito. Há demasiado tempo que o homem olha «de lado» para as suas inclinações naturais, como coisa má, de tal modo que essas inclinações acabaram por se entrelaçar com a «má consciência». Uma tentativa em sentido inverso seria, em si, possível... mas haverá alguém suficientemente forte para a levar a cabo? Uma tentativa para entrelaçar com a má consciência as nossas inclinações não-naturais, todas aquelas aspirações ao além, as aspirações contrárias ao sentido, aos instintos, à natureza, ao animal, resumindo, os ideais até hoje conhecidos, todos os ideais que são hostis à vida e que caluniam o mundo. Mas a quem nos havemos de dirigir hoje com tais esperanças e com tais pretensões...? Porque teríamos desde logo contra nós precisamente os homens bons; e, para além desses, como é evidente, teríamos os acomodados, os resignados, os frívolos, os exaltados e os fatigados... Haverá alguma coisa que ofenda mais profundamente, que afaste mais radicalmente do que alguém dar a ver um pouco do rigor e da elevação com que a si próprio se trata? E, pelo contrário, quanta simpatia e agrado nos mostra toda a gente quando procedemos como toda a gente e quando nos «deixamos ir» como toda a gente...!'
(Friedrich Nietzsche, em Para a Genealogia da Moral)

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