sábado, junho 30, 2007

Excerto de carta de Mário de Sá-Carneiro III


Relato dos acontecimentos feito por Mário de Sá-Carneiro pelo seu próprio punho, em carta de 4 de Abril de 1916, dirigida a Fernando Pessoa. Vinte e dois dias antes do suicídio de facto:

Meu querido Amigo,

Neste enredo formidável de coisas trágicas e até picarescas, não sei desenvencilhar-me para lhe fixar certos detalhes. Olhe, guinchos e cambalhotas sempre - e sempre, afinal, a Estrela de encontrar pessoas que estão para me aturar. O milagre não se produziu, pois não se podia produzir - o meu Pai não tendo recebido o telegrama como já sei. Assim ontem de manhã deixei a personagem feminina destes sarilhos a dormir, bem certa de que pelo meio-dia regressaria a casa com mil francos… Saí para escrever um pneumático longuíssimo onde contava tudo e anunciava o meu suicídio às duas e meia na estação de Pigalle (Nord-Sud). E que lhe deixaria o meu «stylo» na caixa de certo café, como última recordação. Efectivamente preparei tudo para a minha «morte». Escrevi-lhe uma última carta, a você, outra a meu Pai - e a ela outro pneumático… Depois fui para deixar a caneta… E disseram-me que mademoiselle Fulana muito aflita andava à minha procura… (De resto eu dera-lhe rendez-vous antes de «morrer», às duas horas noutro café)… Ando mais, e de todos os cafés entre a Place Pigalle e a Place Blanche me chamam… Resolvi então - embora já tivesse comprado o bilhete - esperar até encontrá-la…De modo que quando a pobre rapariga mais uma vez aflitíssima me procurava, encontrou-me… a tomar um bock e a consultar o Botin num café… Eram 4 horas… Contou-me então que destacara a irmã para a estação do Nord-Sud, e que fora ao consulado português entretanto, donde voltava… Agora aqui, aparece, quando menos se espera, quem? O Orpheu - meu amigo - o Orpheu!… Os cônsules receberam-na risonhamente… que não fizesse caso… que sabiam muito bem quem eu era… que certa revista de doidos da qual eu fora o chefe, etc., …e que era um détraqué, dum grupo de tarados embrutecidos pela cocaína e outras drogas (sic)… Hem, há-de concordar que isto é de primeira ordem! Enfim… Ficou muito contente por me encontrar - descompôs-me - claro, e foi arranjar dinheiro, visto que eu o não tinha… Antes disso, fiz outra cena: quis partir um copo, eu, na minha cara. Ela agarrou-me a tempo a mão. Não obstante rachei um beiço… Uma beleza como você vê… Arranjou-me também dinheiro para mandar novo telegrama ao meu Pai - e em suma até receber a resposta, será ela que - não sei como: isto é demais o sei… - me arranjará dinheiro. Veja você que coisa tão contrária à minha «sorte», à minha psicologia… Agora já não é blague se se disser que eu vivi à custa duma mulher… Lindo, hem! Um encanto… O termo de tudo isto: Mistério…Talvez mesmo ainda o «Metro»… Mas não faça caso… Ui, que praga! Perdoe todos os sustos por que o fiz passar (venho de resto de enviar-Ihe um telegrama a sossegá-Io). Imagine que a rapariga teve que arranjar 60 francos que gastámos em dois dias num restaurante e café, pois na segunda-feira eu garantira arranjar dinheiro… (não olhava a despesas, pois me mataria). Há-de concordar que tenho sorte em topar sempre com criaturas que não me mandam passear - e que no fundo gostam de mim pela minha zoina…Porque a verdade é esta: é a única coisa que me torna interessante. Você não acha? Soube que o meu Pai não recebeu o telegrama, pois aflitíssimo pediu notícias minhas à legação…Mas esta não telegrafou a resposta…pois não há verba para tais imprevistos. Você escreva. Ria-se: mas no fundo tenha muita pena - muita do seu, seu
Mário de Sá-Carneiro

Escreva imediatamente! Escreva.

Excerto de carta de Mário de Sá-Carneiro a Fernando Pessoa, incluída no livro “Mário de Sá-Carneiro Correspondência com Fernando Pessoa (Volume I)” ed. de Teresa Sobral Cunha, Lisboa: Relógio d’Água, 2003.
Imagem: Capa do primeiro número da revista Orpheu, da autoria de José Pacheco. Embora só se editassem dois números, a Orpheu teve um papel fundamental na revolução modernista portuguesa, contando com colaborações de autores como Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro e Almada Negreiros

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