sexta-feira, junho 29, 2007


"Na verdade, tudo é claro, ao reflectirmos e chegarmos à conclusão de que a democracia indirecta é uma mistificação. Pretende-se que a Assembleia eleita é a que melhor reflecte a opinião pública. Mas não há opinião pública a não ser a serial. A imbecilidade dos mass media, as declarações do Governo, a maneira parcial ou truncada corno os jornais reflectem os acontecimentos, tudo isso nos vem procurar na nossa solidão serial e nos enche de ideias de pedra, feitas do que pensamos que os outros pensarão. Sem dúvida que existem no fundo de nós próprios exigências e protestos, mas, por não serem reflectidos pelos outros, esmagam-se deixando-nos «nódoas negras na alma» e uma sensação de frustração. Assim, quando nos chamam a votar, eu, eu-Outro, tenho a cabeça recheada de ideias petrificadas, que a imprensa ou a televisão nela amontoaram, e são essas ideias seriais que se exprimem pelo meu voto, mas não são as minhas ideias. O conjunto das instituições da democracia burguesa desdobram-na: sou eu e todos os Outros que me dizem que eu sou (francês, soldado, trabalhador, contribuinte, cidadão, etc.). Este desdobramento faz-nos viver no que os psiquiatras chamam uma crise de identidade perpétua. Afinal de contas, quem sou eu? Um outro idêntico a todos os outros e habitado por aqueles pensamentos de impotência que nascem por toda a parte e em nenhuma parte são pensamentos — ou eu próprio? E quem vota? Já não me reconheço".
(Jean-Paul Sartre)
Foto de Eve Arnold - Bar Girl in a Brothel, Havana, Cuba, 1954

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