quinta-feira, março 27, 2008

“Querida Favita: cartas inéditas”


Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considero a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas (...)
Carlos Drummond de Andrade

A verdade sobre o poema “E agora, José?”

Sobrinha de Carlos Drummond de Andrade, Flávia Andrade Goulart, conta como era o seu costume de trocar cartas com o tio. Por trás da familiaridade outras revelações da vida do poeta. “Tio Carlos falava que bem poderia ser “E agora, João?” ou “E agora, Joaquim?” Com isso, queria dizer que não foi escrito para o tio Zezé

Drummond continua dando safras literárias. Só este ano em Itabira foram duas obras: a primeira, o livro “O Afeto em Drummond: da Família à Humanidade”, de autoria da professora Lêda Maria Lage de Carvalho (Fundação Cultural CDA); o outro é “Querida Favita: cartas inéditas”, organizado por Flávio de Andrade Goulart e Myriam Goulart de Oliveira (Edufu, 152 páginas). O segundo personagem do livro e co-autora é Flávia Andrade Goulart, filha de Altivo Drummond de Andrade e Maria Auxiliadora Santos Andrade. Favita, como era chamada pelo tio Carlos, hoje com 79 anos, é casada com João Ferreira Goulart, com quem tem quatro filhos, que lhes deram até agora 14 netos.

O enredo de uma história real começa nos anos 1970 e vai até os quatro meses antecedentes à morte do poeta itabirano, ocorrida em agosto de 1987. Os principais ingredientes são os acontecimentos normais em família, a remessa de doces e outras guloseimas, jornais, revistas, livros e outras escriturações. Entremeando o relacionamento familiar, as referências aos acontecimentos políticos do Brasil e, como sempre, citações e lembretes importantes sobre Itabira. A coincidência dos temas das obras de 2007 fica por conta do tratamento à família, ou a revelação de um Drummond mais familiar e eminentemente afetuoso.

O leitor verá como a sobrinha repete que Drummond era, realmente, ressentido com as transformações ocorridas em Itabira e em outro detalhe que pode mudar a história do poema “E agora, José?”

Em 13 de novembro DeFato foi recebida por Flávia Andrade Goulart, em seu apartamento, em Belo Horizonte. A entrevista pode ser o caminho para a leitura e novos questionamentos a respeito da vida interessante do Poeta Maior. Siga-a:

Flávia Andrade: "E agora José não foi para o irmão de Drummond"

DeFato — As cartas entre a senhora e Drummond quase sempre se referem ao que estava acontecendo na família: nascimento, batizado, falecimento, cumprimento de aniversário... Mas atualizavam os acontecimentos políticos, sociais e culturais da época. A senhora sempre ansiava por um comentário à parte, vindo dele?

Flávia Andrade — Sim, claro. Por causa de eu ter esse vínculo maior com ele, ficou sendo minha função participar nascimentos, falecimentos, formaturas... Quando meus netos nasciam, ele sempre enviava um poema em homenagem a eles. Dos 14 netos, somente quatro não têm um poema dele porque nasceram depois de seu falecimento. Como não poderia deixar de ser, comentávamos tudo sobre assuntos variados. E Itabira nunca ficou de fora. Ou melhor, era um dos principais alvos de nossas correspondências.

DeFato — Sobre “E agora, José”, a senhora conhece a sua história — o porquê do poema e a confusão que teria ocorrido numa procissão de Corpus Christi protagonizada pelo irmão do poeta? Que essa confusão teve como causa o amor não correspondido de Amarilis pelo José?

Flávia Andrade — Não foi este o motivo. Primeiro que ele não a chamava de Amarilis, mas simplesmente de Lili. Outra, nunca subiu a escada a cavalo, como muita gente escreveu ou conta. O que aconteceu foi que eles ficaram namorando por muito tempo e meu tio não marcava a data do casamento. Ela cansou de esperá-lo e por causa disso brigaram. Daí teve essa tal procissão em que tio Zezé a viu na janela com uma pessoa e, por isso, terminou o namoro de vez. Esta é a verdadeira história da vida do solteirão José. Quanto ao poema, tio Carlos falava que bem poderia ser “E agora, João?” ou “E agora, Joaquim?” Com isso, queria dizer que não foi escrito para o tio Zezé. A família toda sabe disso e em entrevistas explicou repetidas vezes. Tenho autoridade para falar isso porque sou da família e já tirei a dúvida inúmeras vezes.

DeFato — A senhora conhece alguma outra polêmica de seus escritos?

Flávia Andrade — A afirmação em “Confidência do Itabirano” de que “Itabira é um retrato na parede” é assunto que gerou polêmica porque todos esquecem da frase: “... e como dói”. O que dói é a mudança. Mas o progresso tem um preço. Eu, que sou de uma geração muito depois da dele, quando fui a Itabira e olhei do Alto Pereira a avenida das Rosas, que antes era uma fazenda, onde tinha um caminho pelo qual passávamos, fiquei muito saudosa. Tio Carlos me escreveu uma carta dizendo exatamente isto: se eu, que era nova, sentia a diferença, imagina ele. É claro que estranhei aquela Itabira, porque já não via o Cauê, não via nada que me lembrasse o passado, a não ser a parte do Paredão, perto da casa do vovô, onde era a antiga Prefeitura e a rua Santana que ficou intacta.

DeFato Uma outra polêmica sobre o poeta ocorreu há pouco: foi levantada a hipótese de transferência dos restos mortais de Drummond do Rio de Janeiro para Itabira. Alguém da família foi consultado?

Flávia Andrade — Realmente, ouvimos algo sobre essa idéia, disseram que seria iniciativa do prefeito. Nunca nos perguntaram sobre o que achamos disto. Como agora estou sendo perguntada sobre o assunto, dou uma resposta pública: não concordo. Ele escolheu para ser enterrado no cemitério onde Dolores, sua esposa, foi sepultada. Adquiriu o jazigo muitos anos antes de morrer. Falamos sobre isso em nossas cartas.

DeFatoPor que ele não quis mais retornar a Itabira?

Flávia Andrade — Ele não tinha mais parentes na cidade, por que teria de voltar periodicamente? A família, que já era pequena, mudou-se para Belo Horizonte, então não tinha motivos para voltar a Itabira. Poucas foram as vezes em que foi visitar a filha Maria Julieta que morava na Argentina. Tio Carlos se adaptou bem ao Rio de Janeiro. Fora o fato de que não gostava de viajar, tinha medo de avião e de estradas. A sua vida, a sua grande paixão, era mesmo escrever.

E AGORA, JOSÉ?

Estudiosos e curiosos sobre a obra e a vida de Carlos Drummond de Andrade disputam entre si quem sabe mais sobre o poeta. Vez por outra, os debates, não muito abertos, quase sempre expressos em palestras, declarações à imprensa, artigos assinados e até livros adquirem contornos de polêmica interessante, fato que leva à popularização dos temas drummondianas. Alguns intelectuais parece que não apreciam muito esse tipo de possibilidade, ou seja, querem que o tema fique restrito a rodas selecionadas.

Entretanto, turismólogos preferem o contrário, isto é, a popularização. O turismo cultural, para muitos destes, só se firmará quando o nome do poeta correr em todas as bocas e não apenas para restritos estudiosos.

O livro Querida Favita parece levar as questões para todos os interesses. Após lançá-lo em Uberlândia, onde foi patrocinado pela Universidade Federal local, o organizadores e a autora estiveram em Itabira. Favita se declarou deslumbrada com tantas referências ao tio que existem na cidade: uma estátua no Areão, outra em frente ao prédio da fundação cultural que também tem o nome do ilustre itabirano, a Casa de Drummond (onde estudam os Drummonzinhos), o Memorial CDA e a Fazenda do Pontal, além dos Caminhos Drummondianos, que são dezenas de locais que lembram a obra de Drummond relacionada com Itabira.


Um sobrado na história itabirana: e agora, José?

Um dos locais, em frente ao Hotel Itabira, sobrado que pertenceu ao Barão de Alfié, existe o poema E agora, José? que faz parte do Museu de Território Caminhos Drummondianos. Em outubro de 2002, DeFato publicou um número especial, que teve a significativa colaboração da estudiosa de Drummond, Maria das Graças Lage Lacerda, ou Dadá Lacerda. Tanto as suas referências ao poema quanto o de Maria Rosa Martins da Costa Andrade (no livro Um Sobrado na História de Itabira, Fundação Cultural CDA, 1997) contam que o poema foi escrito especialmente para o irmão de Carlos, José, que viveu a vida como irrequieto solteirão.

A discussão agora pode acelerar. Pelo menos as referências ganham uma nova versão, agora da própria família. Durante a entrevista, Flávia Andrade Goulart chegou a dizer que seu tio Carlos jamais zombaria do outro tio, o Zezé.

(Fonte: Matéria retirada do De Fato Online)

Nenhum comentário: