sexta-feira, março 28, 2008

"Uma vida de poeta é uma rua de vozes..."


O viajante estrangeiro
"Minha viagem na terra
é a de um viajante num país desconhecido,
Não encontro ninguém do meu país.
Os que viajam comigo nesse trem estrangeiro
uns com os outros conversam como amigos...
Que falam eles? - Sei que falam uma linguagem
que, para mim, ai!, nada diz.
Todos podem comprar em aprazíveis paradas
frutos bons como beijos
ou braçadas de flor de um aroma tão bom!
Eu, porém, o forasteiro,
não obtenho esses gozos;
e olho-os, só com o Desejo,
imóvel, escutando a fuga surda do wagon.
Entram as jovens na estação. Que risos claros!
Não são, porém, do meu país.
E viajarei até o final sem nos falarmos,
sem conhecê-las, sem encontrar a frase-chave
com que dizer-lhes quanto me fariam feliz.
Sou de outro reino, onde se fala em melodia
intraduzível neste mundo para alguém.
Falo a música das ondas,
falo a música dos pássaros...
Uma estrela do céu, porém, me entenderia...
porque no céu é assim que se fala também".
(Murilo Araujo)

- Vida iluminada de Poesia -
Prefácio do primeiro volume do livro Poemas Completos de Murilo Araujo
(Ed. Pongetti, 1960)

Não creiam jamais seja eu tão vaidoso a ponto de pretender apresentar aos leitores a poesia de Murilo Araujo, o poeta Murilo Araujo. Longe de mim tão insensata pretensão. Se alguém pudesse apresentar alguém seria ele a mim, pois quando estreei em livro já o nome do poeta corria de norte a sul e de leste a oeste, não só na admiração mas no amor de todos os que necessitam da poesia para viver. Seu primeiro livro, Carrilhões, é de 1917, de cinco anos antes da Semana de Arte Moderna.

É importante marcar esta data, sobretudo hoje quando a história do modernismo começa a ser escrita. Por vezes tem-se a impressão, ao ler certos historiadores da literatura, que tudo aconteceu de súbito, saído o Modernismo da manga do casaco mágico de dois ou três literatos paulistas, sem que ninguém houvesse sucedido antes, sem que ninguém houvesse existido antes do gesto rebelde de Oswald e Mario de Andrade e de seus companheiros de aventura. Ora, não é bem assim. Acontecimentos e homens, autores e poemas, prosa e estudo, prepararam o terreno, fizeram o caminho que conduziu à Semana de Arte Moderna. Como esquecer, por exemplo, Adelino Magalhães? Ou como esquecer este poeta Murilo Araujo que, aos dezoito anos, já trazia em seus versos as sementes da nova mensagem? Pré-modernista, Murilo Araujo tem seu nome ligado, de forma indissolúvel, à renovação da poética brasileira, e, mais ainda, ao fabuloso desenvolvimento cultural do Brasil, para o qual contribuiu e contribui não apenas com sua poesia, mas também, e muito, com o exemplo de sua vida, toda ela dedicada a criação poética, ao anônimo, difícil e heróico trabalho da poesia, Longe dos grupos, igrejinhas, tendências, disses-que-disse, longe da chamada vida literária e perto do consciencioso labor de alguém que nasceu poeta e soube poeta conservar-se através do tempo. Não, não é possível escrever-se a história do Modernismo sem que o nome de Murilo Araujo seja logo citado como um daqueles que prepararam o evento dos tempos novos. Os seus primeiros livros - ainda obra de adolescente - marcam o caminho de libertação que a poesia iniciou entre nós. Depois de Carrilhões saem as Árias de muito Longe, onde o jovem poeta, cheio de melancolia e de suavidade vai-se encontrando, vai apurando sua voz e crescendo. Prepara-se para o livro que vai torná-lo o amado poeta da cidade do Rio de Janeiro, livro, a meu ver, dos mais importantes dos primeiros tempos do Modernismo. Um ano antes da Semana de Arte Moderna, em 1921, já triunfa o Modernismo com o triunfo de A cidade de Ouro. O poeta canta sua cidade, desvenda-lhe o segredo mais profundo, penetra seu mistério. "Eis a cidade de ouro e mármore fantástica!", exclama ele com as mãos cheias de rosas de ouro para desfolhá-las em louvor de sua cidade:

"estas rosas de amor que em ti mesmo nasceram,
estas rosas de amor que por ti resplenderam,
e ao sol-dos-sóis, numa agonia de ouro
se desfolharão!"

Releio este livro tantos anos depois de sua publicação e novamente vibro com ele, sinto a cidade nos versos iluminados do poeta, esse Rio que iniciava sua transformação ao mesmo tempo, e não por acaso, em que se transformava a poesia. Depois foi A Iluminação da Vida, livro de 1927. E depois os outros livros, incluindo aquele delicioso livro de poemas para crianças (1) e o livro para adolescentes que o patriotismo do poeta criou (2). Uma vida inteira consagrada à poesia. "Um vagalume da várzea estrelada", intitulou-se ele. Vagalume iluminando a noite dos homens, enchendo-a com a beleza do luar. Nunca jamais, no entanto, um homem desligado do seu tempo, um poeta fora do mundo, "Vejo tudo através de meu sangue vermelho", escreveu certa vez, e essa verdade esplende em toda sua poesia, do primeiro livro aos versos de hoje, da maturidade, quando já não tem a poesia nenhum segredo para ele, quando suas mãos enfeixam todos os mistérios da criação poética. Eu era um adolescente inquieto, preso entre os muros de um colégio interno e dessa prisão cinzenta fugia nas asas dos poetas. Ali chegavam os ecos da batalha travada pelo Modernismo e os alunos com inclinação literária dividiam-se e tomavam partido. Ali chegou o livro de Menotti del Picchia, "O homem e a morte", e nós, os rebelados, fazíamos questão de lê-lo em voz alta. Ali chegaram os versos d'A Iluminação da Vida e foram, para nós bandeira e arma de batalha. Como não emocionar-me ao reler agora toda a obra poética de Murilo Araujo e reencontrar de súbito aquele tempo perdido quando o sonho era alimentado pelos versos deste poeta ("Ah deixar o rumor destes dias mecânicos / inçados de algarismos!") Repetíamos os versos nas bancas de estudo, nas salas de aula. depois eu viria conhecer o poeta, ter a honra de sua amizade, o seu louvor generoso às minhas ásperas histórias das roças de cacau e do cais da Bahia. Não poderia ele adivinhar com que emoção aquele jovem apertava a sua mão amiga, pois uns sonhos de menino tinham buscado seiva em seus versos anteriores. Vejo Murilo Araújo em sua casa de quadros e plantas, de livros e tranqüila doçura. A obra do poeta, mais de quarenta anos de bom trabalho diário, de devoção comovida, de amor sem desfalecimento desfila ante o homem de cabelos canosos que sou hoje, um contador de histórias toda vida contador de histórias. Mas, em verdade, quem está nesta cadeira a folhear livros, a ouvir versos, a escutar a voz do poeta é o menino de ontem, que leu, no internato solitário, A Iluminação da Vida e nela aprendeu a amar a poesia e a vida. As sete cores do céu, ("Sua voz era humilde como alguém que pede esmola"), A estrela azul, para crianças ("três estrelazinhas vão subindo o monte"), A escadaria acesa ("Prender nas mãos as espumas claras"), os livros escritos e publicados pelo poeta, os livros ainda a publicar, os livros ainda a escrever... Uma vida de poesia e para a poesia, uma vida de verdadeiro poeta para quem não existiu outra coisa senão a poesia ou seja o bem dos homens, a infinita ternura, a compreensão, o sonho, o amor como norma e objetivo. "Creio na Poesia, indispensável à vida", escreveu Murilo Araujo abrindo um de seus livros. Fiel toda a existência a essa crença, fiel ao mais alto humanismo, fiel a si mesmo. Entre os grandes de nossa poesia, seu nome é dos mais definitivos. Sua obra e sua vida encerram a mesma grandeza, a mesma lição. Nós, seus leitores, seus amigos, seus admiradores, lhe devemos enorme gratidão. Porque soube criar poesia e soube ser poeta em toda a extensão da palavra, em toda a dignidade da palavra.
Jorge Amado

Rio de Janeiro, Natal de 1959.


Notas de rodapé:
1 - Referência ao livro A Estrela Azul (1940)
2 - Referência ao livro O Candelabro Eterno (1955)

Glossário:
  • Adelino Magalhães - Escritor brasileiro (Niterói, RJ, 1887 - Rio de Janeiro, 1969). Fez parte do grupo espiritualista do modernismo. Estilo impressionista. Obras principais: Visões, cenas e perfis (1918); Tumulto da vida (1920); A hora veloz (1926); Plenitude (1939).

  • Canoso - Branco.
    Fonte

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